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Marcos Resende Histórias

Marcos Resende Histórias

Aureste I e Último, Supremo Leitor das Galáxias

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01.
O eminente crítico Célio Segundo Salles insinuou com a sutileza que lhe é peculiar, que "o único caminho a que leva o aurestismo é o da ignorância completa a que estarão sujeitos os seus eventuais seguidores".


Dados estatísticos da Unesco comprovam que o aurestismo contamina muito rapidamente a população mundial. Como a doutrina se baseia — a priori — na atividade filosófica de a pessoa só afirmar o que os outros dizem, chegará um tempo em que ninguém afirmará mais nada. Isto acontecerá dentro de pouco tempo, porque o aurestismo (ou dizemquismo) é um eloquente e total desencorajamento à originalidade. E só poderá sobreviver enquanto alguém disser alguma coisa original.

Lavoisier será impiedosamente desmentido, porque nada se perderá a partir do aurestismo. Mas, também nada se criará. E muito menos
se transformará.

As previsões do professor Célio Segundo Salles coincidem com a de todos os demais pensadores da atualidade: são unânimes em concluir que, chegará um tempo em que ninguém fará, dirá ou negará qualquer coisa. Imobilidade total. Todos se limitarão a fazer, declarar, ou contar o que os outros já fizeram, ou disseram. Isso, enquanto houver recalcitrantes.

Nesse dia
provavelmente os seguidores do aurestismo portarão cimitarras de raio laser, e cercarão os infieis nas esquinas sombrias, repetindo a ameaça eterna: o aurestismo, ou a vida? É bem verdade que, alguns velhacos, acrescentarão uma terceira afirmativa: a bolsa, a vida, ou o aurestismo. Esses ― mais cedo ou mais tarde ― terão um fim trágico.

A filosofia aurestiana nasceu morta. Ao mesmo tempo em que proíbe a originalidade, vive e usufrui dela, como o carrapato vive do boi. É preciso alguém fazer, ou dizer alguma coisa original, para os sectários do dizemquismo disporem de assunto para sobreviverem.

Haverá fogueiras inquisitoriais que Aureste mandará confeccionar, numa homenagem devota a Inácio de Loyola, um de seus ídolos mais queridos. Os idólatras livre-pensadores se transformarão em cinza e fumaça. Fumo este que Aureste confundirá com o incenso que lhe foi negado pelo destino padrasto que (contrariando seus planos mais ardentes) não lhe deu a cadeira papal, tão voluptuosamente ambicionada.

Os que fazem oposição à doutrina de Aureste, o Citador, temem-no profundamente. Principalmente, os que não ignoram a vocação irrefreável que esse filósofo tem para o governo ditatorial. Foi embalado por exaltados hinos fascistas, cantados por seu pai, quando era bebê. Seus primeiros brinquedos foram um cata-vento em forma de cruz suástica e um Mussolininho de borracha, estilo joão-teimoso, que Aurestinho, no seu linguajar de criança nova, chamava de Dutinho ― diminutivo de Duce: ― Oh, papá, cadê meu Dutinho? Eu não consigo dormir sem meu Dutinho!
E o papá, orgulhoso, levantava-se, altas horas da noite, para pegar o Dutinho que, não raras vezes, caía no urinol.
— Oh, meu filhinho, o papá também gosta muito de Dutinho! Só que o do papá, é Dutão! Aurestinho, no futuro, fará maravilhas na indústria do urinol.

Por essas e por outras, é que nos meios intelectuais mais esclarecidos, o nome do filósofo dizemquista era pronunciado com temor, que se transformou em terror, quando foi publicada a conversão do presidente da maior potência do mundo à nova doutrina. À guisa de batismo, o chefe de estado — insuflado por Aureste — proibiu a publicação de novos livros, seguindo-se a queima, em auto-de-fé, dos que foram publicados depois do dia 7 de junho de 1948, data de nascimento do filósofo.

 

Iniciou–se uma campanha publicitária, apoiada pelas emissoras de rádio e televisão, cuja chamada era: "DENUNCIE UM ESCRITOR E GANHE UM BARCO A MOTOR". Não havia julgamento. Eram sumariamente executados.

— Não havendo julgamento — disse Aureste — o terror inspirado será muito maior. O povo ficará mais depressa desencorajado a pecar. Aureste sempre gostou do termo pecar e o suava constantemente.

O Supremo Leitor buscará, ainda, inspiração em outro de seus super-heróis amados, o apetitoso Hitler ― personagem assíduo de seus sonhos de infância, na época em que os outros meninos sonhavam com Zorro, Robin Hood, Batman, etc.. Ativado por essa inspiração, o filósofo ordenará o ressurgimento dos campos de concentração em todos os quadrantes do planeta, onde sertão efetuadas lavagens cerebrais em massa nos "cães asquerosos" que, porventura, cometerem o deslize de descobrir as coisas por si próprios, em vez de aprendê-las nas escolas, colégios e universidades.

As casas serão meticulosamente visitadas pela milícia dizemquista e — se por acaso — não encontrarem um diploma correspondente a cada membro da família, serão arrasadas e salgadas, para que nunca mais no chão se edifiquem. Não serão perdoados hóspedes e empregadas domésticas.

O menino ou a menina de quatro anos que não tiverem o certificado do Curso Maternal, serão imediatamente jogados aos gatinhos selvagens de Sumatra. Os de cinco anos completos e sem o devido cartucho do Jardim da Infância, serão destinados às serpentes hindus. Para os de seis, Aureste — que dará a si mesmo o título de "Supremo Leitor" — decretou obrigatória a posse do Diploma de Pré-primário. Caso contrário serão emparedados vivos na Praça da Carteirinha de Estudante onde, à custa dessas crianças desobedientes, está se erguendo um monumento ao Banco Escolar, inspirado na Torre de Babel. E como a safra deste ano foi boa, o obelisco já mede quatrocentos e trinta e oito quilômetros de altura, por dois quilômetros quadrados de espessura, e o mesmo tanto de comprimento. Ai daquele que aos dez anos não houver concluído o primário: degolação com cepo, machado e verdugo. Aureste sempre nutriu romântica atração pelas coisas e hábitos do passado.

O Supremo Leitor — num requintado gesto de humorismo — materializará a expressão "bomba". Submeterá os alunos reprovados a uma morte correspondente ao crime: mandará amarrá-los a uma bomba-relógio. Vamos dar um exemplo de como funciona esse mecanismo: faltou a um aluno seis pontos em geografia, sete em história e três em matemática para que passasse de ano. Total: dezesseis pontos. Os ponteiros do relógio da bomba serão acertados para dezesseis horas antes de acionarem o dispositivo da explosão. Aureste se orgulha de haver copiado este processo. E dizem que até afirmou, certa vez, que leu em algum lugar de que não se recorda, que quanto mais demora a morte, mais sofre o condenado. Portanto, dizem que ele considera este sistema de execução o mais perfeito e justo jamais copiado por cérebro humano, uma vez que o castigo corresponde exatamente às dimensões da culpa. Dizem que ele até acrescentou, sorrindo e balançando as bochechas gorduchas: — Eles que tratem de tomar bomba só por meio ponto! Dizem que, ao ouvirem isso, seus generais-catedráticos riram bastante!

Aos que transgredirem sua lei que proíbe aos alunos tomarem segunda época, manda açoitar em praça pública. O pelourinho escolhido situa-se na famigerada Praça das Aspas. Neste caso, os pontos faltantes são multiplicados por dez, e o total, transubstanciado em chicotadas, com chibatas de arame farpado. O Serviço Militar foi abolido. Em seu lugar, o cidadão ficará legalizado com a nação ao apresentar três diplomas universitários. Dizem que Aureste pretende duplicar este número.

Aureste tem um secretário particular, o popular João da Quita. Dizem que o motivo da escolha foi o de que João da Quita, apesar de não ter nada na vista, apareceu na presença do Paladino da Escola, usando óculos de lentes grossíssimas que se projetavam como dois telescópios, medindo os canos quarenta e dois centímetros, aproximadamente. Ajoelhado no chão da sala do trono, João da Quita em meio a choramingos e soluços disse a Aureste, que ficou naquele estado de tanto ler. O Filósofo-Leitor se comoveu e condecorou o pobrezinho com a Ordem do "É Preciso Ler".

A Ordem do "É Preciso Ler" foi inspirada no Precisismo. Aureste mandou matar Joanny e acrescentou ao "É Preciso" o verbo "Ler". Dizem que isso se sucedeu em 2989, ano que ficou famoso porque Aureste mandou matar todas as mulheres bonitas do mundo. — Minha intenção era de matar todas. Mas — e coçava as bochechas gorduchinhas — o que seria da procriação, não é mesmo?

Aureste será muito injustiçado pela posteridade. Dirão que foi cruel. Taxá-lo-ão de tirano, monstro. A humanidade é ingrata. As palavras que Shakespeare colocou na boca de Marco Antônio não perecerão jamais: "o mal que os homens fazem vive depois deles. O bem é quase sempre enterrado com seus ossos". Se assim o foi com César e com tantos outros, que o seja também com Aureste. Os historiadores se esquecerão de exaltar o impulso velocíssimo que o Supremo Leitor imprimiu às ciências, à tecnologia, à pedagogia, etc. Impulso este estimulado por ameaças terríveis! Os feitores munidos de chicotes eletrificados vigiavam as pesquisas dos cientistas nos laboratórios, e espécimes maravilhosos nasciam em tubos de ensaio, a cada minuto. "Se o sábio tem sono, se no chão resvala, ouvem-se gritos, o chicote estala. E inventa mais e mais." Ao cabo de três meses, as maiores sumidades do mundo terminaram por sucumbir, pela falta de sono, ou pelo excesso de anfetamina que os feitores injetavam em suas veias para ativar-lhes a mente e prolongar-lhes a vigília. Dizem que Aureste chorou uma lágrima sentida ao saber da morte, e comentou: — "Mártires da Ciência! Oh, ciência ingrata, que mata seus filhos mais dedicados!".

Morreram, mas cumpriram sua missão: criaram uma espécie de ácido que emudece para sempre quem o toma. Criaram um refrigerante que se chama Refrigerante Biblioteca Particular Dante Alighieri. Durante três dias e três noites, foi distribuído gratuitamente em todas as casas do mundo. Aureste providenciou propaganda superior à da Coca Cola, coisa aliás, desnecessária, porque quando os nonilhões de cartazes ficaram prontos não havia uma pessoa sequer sobre a face da terra que não estivesse viciada na bebida. A sofreguidão foi a maior de que já se teve notícia. Desnecessária também foi a trabalheira dos químicos ao criarem um sabor irresistível de creme-de-milho-de-chocolate-levemente-gasoso. A calculada dose de cocaína adicionada ao refresco, garantiu o sucesso. E de uma forma tal, que o povo só chegou mesmo a prestar atenção no sabor, nos primeiros goles, e depois nunca mais teve tempo para pensar nisso.


O espírito clarividente de Aureste, orientado pelo seu descortino comercial invejável, havia acertado mais uma vez, quando, meses antes do lançamento do Refrigerante B.P.D.A, decidiu, para espanto de todos, comprar todas as fábricas de urinol do mundo. Mais uma vez foram utilizados os bons serviços dos feitores para incentivar os operários na confecção de penicos. João da Quita, que puxava o saco de Aureste, não digo em pensamento, mas até em sonho, pela primeira vez ousou pensar que seu amo e senhor enlouquecera. Mas, foi o primeiro a beijar as mãos de Sua Majestade Escolal, quando presenciou através de uma janela do Palácio do Magistério, que a multidão transeunte havia incorporado o penico à coleção de objetos indispensáveis e inseparáveis.

As senhoras, respeitosamente, carregavam-no como se fosse uma bolsa. Os homens de negócios seguravam-no impavidamente com a mesma mão que sempre transportou a pasta de papeis. O acessório conferiu às mocinhas feias (as bonitas já não existiam) um charme especialíssimo e um tanto quanto erótico. As crianças, as velhas, os velhos e os rapazes não saíam de casa sem o apêndice, que nos tempos idos fora chamado de vaso noturno, algo ancestralmente desprezível, escondidinho debaixo da cama, sempre com vergonha. Agora, não! Tornara-se de primeira necessidade. E a vergonha foi se transformando gradativamente em moda. Frases nunca dantes pronunciadas entraram em uso corrente. Era muito comum se ouvir:
— Lúcia, te telefonei para perguntar se esqueci o meu peniquinho em tua casa.
Ou, então:
— Comprei ontem na butique da Milikas um penico de porcelana chinesa que é um sonho! Ih, nem adianta ir lá: é antiguidade, querida. Pertenceu à Marquesa de Castilha.

No princípio, todos procuravam carregá-lo escondido, principalmente as pessoas gradas. Mas, depois que o cantor e compositor Sílvio Brito o expôs abertamente num programa de televisão, a juventude passou a imitá-lo para escandalizar os mais velhos, que acabaram aderindo também, e até o transformaram em objeto de ostentação. Dizem que o governador dos Estados Lidos da América do Norte gastou boa parte do orçamento do país, com a compra de um urinol de ouro para a esposa, por ocasião das bodas do mesmo metal. E assim foram surgindo vasos de todos os tipos, em todas as cores; de aço inoxidável, de acrílico, de plástico. Os homens geralmente preferiam os marrons ou pretos. E dizem mesmo que, se um rapaz ou até mesmo um senhor de idade madura aparecesse com outra cor, os comentários não eram muito lisonjeiros.

Todo o dinheiro da população mundial ia velozmente sendo transferido para os cofres do governo central e único de Aureste, o Citador. As filas nos bares se intensificaram tanto que, nem com a improvisação de milhares de balcões nas casas residenciais, deixaram de existir. Nem Aureste poderia prever esse resultado massacrante. O voluntário que sob suas ordens provou o refrigerante para testá-lo, não resistiu e teve que tomar mais cinco garrafas naquele dia. Aureste entusiasmadíssimo resolveu, num arroubo de gratidão, procurar os cientistas para condecorá-los pessoalmente. Encontrou-os agonizantes. Foi aí então que, com um fiapo de voz, o químico-chefe revelou, para surpresa de Aureste, que o sabor creme-de-milho-de-chocolate-levemente-gasoso, além de delicioso, possuía a virtude de provocar uma sede insaciável.

O consumo era tal que Aureste teve que mobilizar seus feitores para persuadirem os fabricantes do líquido a por sua vez fazerem o sacrificiozinho patriótico de não dormirem. Nessa época foi construída uma imensa piscina para comportar a beberagem. As garrafas sofriam sucessivas transformações. Quanto atingiram o tamanho de um garrafão comum de cinco litros, Aureste, segundo dizem, verificou que o povo não tinha mais dinheiro. Que o povo bebia ininterruptamente. Pelo gargalo mesmo, para não perder tempo em encher o copo. Dizem que nesse mesmo dia, chegou um relatório mundial de sua indústria de urinois, revelando que ninguém mais estava comprando e estavam mijando na rua, mesmo, porque a urina saía simultaneamente ao ato de beber. E como todo mundo tinha que segurar o garrafão com as duas mãos, era humanamente impossível o uso do receptáculo. João da Quita foi o único que se escandalizou com o fato de todos terem dispensado completamente o uso das roupas, como também não percebeu que ele era o único que mijava nas calças, porque tinha um pudor de freira.

O fedor da urina tornou-se insuportável em Palácio, mas só chegou realmente ao nariz de Aureste no dia em que ele constatou que o povo não tinha mais dinheiro e que já era tempo de adicionar à fórmula o ingrediente que provocava a mudez. Conseguido o resultado, mandou suspender a produção bruscamente. E o mundo se debatia nas labaredas e brasas da vontade alucinada de beber o refrigerante, quando foi promulgado o decreto de que as férias haviam acabado e que todos os habitantes do mundo — viciados, mudos, pelados e pobres — deveriam imediatamente voltar aos estudos e ao trabalho.

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João da Quita levou a bajulação longe demais. E foi o único também que teve coragem de fazê-lo durante os noventa e dois anos que durou a leitura de Aureste I e último, Supremo Leitor das Galáxias. Morreu empalado na pena de uma caneta-tinteiro gigantesca. Crime: ousou perguntar a Aureste porque ele se intitulava Supremo Leitor, uma vez que pela lógica dizemquista, cabia-lhe muito melhor o título de Ditador-Que. 

ILUSTRAÇÃO
Aloísio Abreu
 
Varginha, 1971


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