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Marcos Resende Histórias

Marcos Resende Histórias

O Filho do Eclipse

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01.

Nasci num eclipse. O parto coincidiu em hora, minuto e segundo com a escuridão. Mau sinal, mau sinal ― murmurou alguém. ― Nem filho do sol, nem da lua. Enjeitado pela luz! Boa coisa não será este menino! ― resmungou. Tinha uma verruga e se chamava Maria. Enquanto a humanidade ficava estabelecendo inter-relações entre alhos e espantalhos, meu pai foi ao cartório e me registrou: Pedro. Luís Romano era invulnerável às superstições. ― É filho do eclipse! ― rotulava-me Maria da Verruga. Ninguém, honestamente, sabia o que significava ser "filho de eclipse" e se isto pudesse trazer consequências boas ou nocivas ao recém-nascido. Mas, tinha cara de ser qualquer coisa ligada à bruxaria ― e o comentário era engolido por todas as bocas. Bocas que o cuspiam em outras bocas. Assim circulam (e se distorcem) as notícias.

― É filho do eclipse! ― o rumor percutiu nas ruas. Para uma camada ignorante da cidade de Serra do Sol, Pedro Romano era alguma coisa parecida com uma ameaça futura, um perigo nascendo, uma serpente-nenê. Minha mãe ficou apreensiva:

― Luís, o menino é filho de eclipse mesmo?
― Que eu saiba, não, Juliana. O filho é seu. Bom, é meu também... Ou, não?
― É filho do eclipse! ― respondia o eco.

O povo de Serra do Sol acompanhava curioso os primeiros dias de Pedro Romano. Indecifrável expressão alterava o rosto de quem olhava o berço da criança. Disfarçadamente, faziam-no chorar, para que pudessem se certificar de que não havia nascido com nenhum dente na garganta. E ficavam sem saber em quem acreditar: na natureza (que lhes exibia um menino perfeitamente normal) ou na superstição incutida pela repetitiva palavragem de Maria. Com indefinida opinião continuariam a olhá-lo na bebezisse, infância, adolescência.

 

02.

Luís Romano estava na oficina, quando a notícia chegou: ― Corre para a Maternidade que teu filho nasceu! Maria da Verruga soube, em sua cozinha, momentos antes que o pai. Dizem que a gordura da frigideira espirrou na cara da velha. No queixo. No centro geométrico da verruga cabeluda. Maria chiou e saiu com a invencionice. Amarrou um pano nos cabelos engordurados, agarrou a primeira pessoa que encontrou:
― Nicanor, nasceu o filho do escuro!
― Filho do que?
― Do crípis!
― Não conheço, quem é?
― Não é gente, Nicanor! É o crípis!
― Calma, dona Maria. A senhora está muito afobada, nervosa. O que é que está acontecendo?
― É filho do eclipse! Da escuridão! Reza, porque o mundo vai acabar!
Nicanor não deu confiança. Havia muito mato para arrancar do jardim público. E ele ganhava por tarefa. Maria da Verruga vai atrás da lavadeira, pessoa muito mais acessível e compreensiva.
 

― Será que tinha alguma coisa de mal se o neném fosse mesmo filho do eclipse, Luís?
― Não, Juliana. Não. Seria o mesmo que ser filho da farinheira ou da tesourinha-de-unhas.

Não estava na Maternidade na hora do parto, seu Luís? Não sabia que dona Juliana ia dar à luz naquele dia?
― Sabia. Juliana começou a sentir a dor na hora do almoço. Chamei um carro, ela ficou lá com a mãe dela e uma parteira, e vim para a oficina.
― O senhor devia ter ficado lá também, uai!
― Para que? Não sou parteiro. Está vendo esta máquina? Às cinco e meia, o Jurandir do Armazém vem buscar.
― Mas, o senhor já foi ver a criança?
― Fui. Vi. E estou de volta. O Jurandir precisa da máquina para bater a declaração do Imposto de Renda hoje, sem falta.
― Que é isso?! Primeiro filho! E esta cara de que não está acontecendo nada!
― Gostei, gostei, "seu" Benedito! Estou dando pulos de alegria! Pega dinheiro na gaveta do meio e vai buscar vinho, conhaque, champanha, o que o senhor quiser, no bar do Compadre. O senhor bebe, festeja e fica acreditando que eu gostei. Durante o tempo que a bebida estiver descendo goela abaixo, o senhor não vai poder falar nada. E eu ― já que não bebo ― vou consertando a máquina sossegado. Pega o dinheiro, vai! "Seu" Benedito foi o único que bebeu à minha saúde. Silenciosamente, atendendo à condição imposta por Luís Romano.

03.


Maria da Verruga é obstinada. Sobe e desde morros e escadas. Aperta campainhas, bate às portas, interessadíssima no desinteressante e simples nascimento de uma criança. Tão corriqueiro nascer e morrer. E como sofreu a coitada! A humanidade é alérgica, por índole, a ouvir seja lá o que for (a não ser, é claro, a própria voz). Maria sublinhava as palavras agourentas com olhares dardejantes! Morreria, se não conseguisse convencer, atrair, hipnotizar, fanatizar, comover o povão descansadão, sossegado de Serra do Sol. Suor cozinheiro perfurava seus poros, dando-lhe um aspecto de quem estava tomando chuva. A verruga, incrustada no queixo, executava acrobacias espantosas ao som da sinfonia em semifusas da língua apocalíptica.

― Agaranto pra senhora, dona Matirde: é filho do ecrípisso! A palavra ia sofrendo evoluções rápidas e gradativas na medida em que Maria escutava as pessoas a pronunciarem corretamente. Muitos anos depois, quando, vestindo uma camisolona branca, descalça, empoleirava-se em uma das árvores da praça, proclamando-se Nossa Senhora de Fátima, e ali ficava horas e horas imóvel, mãos postas, debulhando um terço, já conseguia dizer ecripse.

04.

Quem acreditou, contribuiu na difusão e na confecção da lenda (criação coletiva e mutante), acrescentando ingredientes imaginosíssimos a cada versão. Compilando-se as múltiplas e descontroladas narrativa, dá o seguinte: “Maria da Verruga estava fritando pasteis. Há o eclipse (que, indiscutivelmente existiu). Maria, apavorada, vai à janela. Olha para fora. Escuro. O fogão de lenha mantinha o ambiente iluminado. Súbito, milagre! Do fogo surge a visão de São Jorge, montado em um cavalo branco e espetando o dragão ― igualzinho nas gravuras das folhinhas. O santo lhe diz: ― “Maria, minha devota, “ispaie” no mundo a “notiça”: essa escuridão é o capeta que desceu na Terra e acaba de nascer para acabar com o mundo!”. E desapareceu. A lata caiu do alto da prateleira esparramando sal no chão. A gordura da frigideira espirrou na verruga da devota. E assim, por diante”. Quem não acreditou, se calou, se esqueceu. Um bom número de pessoas ora duvidava ora achava que “bem que está parecendo que está meio com cara de ser verdade, mesmo”.


05.


Ninguém teve coragem de aborrecer Luís Romano, homem bom e esquentado. Não mexia com ninguém para que não mexessem com ele. Pouca palavra, gênio decidido. Uma vez dera um murro na boca de um mau perdedor num jogo de palitinho. O biltre, após ofensas iniciais à pessoa de Luís (que ele ia aguentando quieto), partiu para o terreno da honra da família. Três dentes a menos na boca do pilantra. Sossego e respeito para Luís, o resto da vida.


06


Minha infância ― como era de se esperar ― correu comum. Fui um menino igual aos outros: gruo escolar, sarampo, coqueluche, caxumba, catapora, papagaio, pião, bola de gude, estilingue, peladas com bola-de-meia, álbuns de figurinhas, brigas de rua, troca-trocas, catecismo, matinês, gibis, namoradinhas. Queimado de sol, sem medo de chuva, nadava no rio, andava a cavalo, armava arapuca, pegava pardal, pegava sanhaço, brincava de pique, mocinho e bandido. Pulava muro, roubava manga, jabuticaba, atiçava marimbondo, matava sapo. Briga de turma, briga de pedra, bola de barro...

Quando, aos treze anos, minha vida sexual se despertava, Maria da Verruga, de cabeça toda branca, vivendo da caridade pública, metina na camisola de santa, ainda insistia e insistia:
― É filho do eclipse! O mundo vai acabar.

Uma quantidade razoável de cachorros magros a seguia pelas ruas. Moleques buliam com ela, lhes atiravam coisas. Ela os repreendia, corria atrás deles brandindo um bastão. Bastão em que se apoiava, de tanta velhice.

Aos catorze anos, em plena puberdade, inicia-se o crescimento de pelos branquinhos na região do sexo, no peito, nas axilas e nos braços, o que nos causa estranheza ― a mim, a meu pai e a minha mãe: família toda morena. Em pouco menos de um mês, os pelos se alastraram revestindo todo o corpo, inclusive pés, mãos e o rosto. Foi nesta ocasião que senti minha primeira cólica. Colicazinha leve. Fui ao banheiro e ... Nada.

Uma outra anomalia digna de nota, verifiquei, eu mesmo ao espelho, numa manhã: meus lábios alongavam-se, engrossavam-se, endureciam-se. À tarde, a cólica, novamente. Desta vez, consigo expelir, sem fazer muita força, um ovo ― pouco maior do que o da galinha. Comunico o fato a meus pais, que quiseram ver o ovo, pegar, cheirar, examinar e comer.
― Cozido ou frito, Luís?
― Cozido, naturalmente.
― Hum, está muito gostoso. Quer um pedaço, Pedrinho? 


07.


Chegou um tempo em que, para evitar chacotas, preferi me isolar dos amigos. Não que Luís e Juliana contassem a algum sobre o ovo. Tornara-se insustentável apresentar-me às ruas como um ser humano. Os pelos brancos eram princípio de penas, agora longas e inconfundíveis. Os lábios, definitivamente, moldaram-se num afiado bico. Acima dos braços, nos ombros, o crescimento das asas andava bem adiantado. O ovo de cada dia adquirira consistência e tamanho definidos. Apenas mãos e pés, braços e pernas, sexo e olhos, orelhas e nariz permaneciam humanos, muito embora (como já disse) envolvidos por uma penugem branca e macia.

 

Todas as noites, às escondidas, eu treinava no terreiro de casa. No dia em que consegui elevar-me a dez metros do chão, Luís Romano se entristeceu, o que acontecia raramente em sua vida. Em conversa com minha mãe, depois de ambos haverem se recolhido (do meu quarto pude ouvir, apesar de falarem baixinho) ora indagava a si mesmo, ora interrogava Juliana: como seria possível, a solução não chegava. Nem conjeturas havia. Nem hipóteses nem nada. Estavam completamente apoiados no ridículo, no absurdo, no impossível. Será que a justaposição da lua sobre o sol (e o consequente campo magnético tríplice criado: sol-lua-terra) teria emitido algum raio invisível, alguma vibração inaudível que, na hora do parto, houvesse alterado a estrutura genética do recém-nascido? Perguntas, perguntas, perguntas. Suposições. Teorias. O cérebro extenuado. A febre queimando a testa. A máquina trabalhando: a explicação? A saída? A insônia sem solução. E as perguntas.


08.

Luís Romano, logo que o dia amanheceu, foi procurar Maria da Verruga. Encontrou-a no meio da praça pública, de pé, totalmente imóvel, como uma estátua, coberta de azinhavre e cocô de passarinho. Do pescoço para baixo, havia se transformado e produzia o som de sino, se lhe batessem com uma pedra ou um pedaço de pau. Maria finalmente emudecera. O rosto, paralisado, quase metálico, morto, dissipava qualquer dúvida: o bronze trepava em seu corpo com a voracidade da lepra, a fúria da parasita. O sino chamava para a missa das sete. Era Domingo de Ramos. Seria o sino ou Maria?

 

09.


Em casa, minhas relações com Luís e Juliana eram excelentes. Minha mãe já se Habituara a me alimentar com pratos de natureza mista. Eu, da mesma forma que apreciava o alpiste ― não passava sem arroz, feijão, abobrinha, bife, batata. O mais difícil foi convencê-la a conseguir minhocas, numa ocasião em que esse desejo atávico se despertou em mim. Bem alimentado, benquisto no lar: papai e mamãe, além de amarem, me compreendiam incondicionalmente. Não me tratavam como a um aleijado ou a um marciano, mas, com naturalidade, simplicidade e carinho. Conversávamos sobre todos os assuntos com liberdade e respeito pela opinião de cada um. Líamos em voz alta, um para os outros, nos revezando. Inventávamos formas de recriar, renovar, esticar ao máximo os passatempos caseiros. Jogávamos baralho, xadrez, damas, víspora, dados. Luís nos fez meses de sinuca, de pingue-pongue. Éramos amigos, nos divertíamos, éramos felizes. Nada me faltava. Exceto a liberdade. Minhas asas longas, belas, brancas, robustas poderiam, creio eu, cruzar oceanos inteiros, atravessar continentes.

Plena Semana Santa. Quinta-feira, dia da Cerimônia do Lava-Pés. Quando eu era criança, participei. O Bispo lava os pés dos meninos, fantasiados de apóstolos. Era bom, tinha pão, doce, vinho.


10.


Na Procissão do Enterro, na Sexta-Feira da Paixão, decidi me incorporar à multidão. Misturei-me aos meninos e meninas vestidos de anjo. Não sou muito alto. Cobri o rosto com véu. Deu certo. Ninguém percebeu. Gostei tanto de sair, de estar perto do povo que (apesar dos temores e receios de Luís e Juliana) me levantei, domingo, às cinco da manhã para a Procissão da Ressurreição de Jesus. Consistia numa simples volta em torno da igreja. Toda a cidade de pé, foguetes, banda de música. Meus pais acabaram vindo. Estamos quase chegando, a procissão terminando, meu instinto de pássaro vence a vergonha e o medo. Alço voo. Leve. Livre. A estátua de Maria solta um berro gutural que empesta a praça: cheiro de alho, cebola, pimenta. um vapor amarelado sai-lhe pelos olhos, ouvidos, pela boca. A fumaça atinge os olhos de todos, provocando-lhes lágrimas ardidas. 

Luís Romano e Juliana, metidos na multidão, acenavam-me para que descesse. Eu já voava muito alto, mal os podia ver, mas, acenei-lhes também em despedida.


São Paulo, 1971

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