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Marcos Resende Histórias

Marcos Resende Histórias

Um Motivo Para Rir

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Quando ele pensou que poderia adiar a dor, viu que estava no limiar de mais uma das incontáveis ratoeiras que ele mesmo deflagrava, em que ele mesmo se prendia.

Mesmo assim, tudo fez para sucumbir, aceitou a emboscada do desespero e mergulhou na festa. A gargalhada lhe acenou com seus perigosos guizos. E ele lhe deu a mão.

E como sempre acontecia, fez dos mais insignificantes objetos e acontecimentos, um motivo para rir. Para fazer rir o pessoal de sempre, que esperava isto dele: o riso fácil, a piada aguda.

Mas, tudo naquele dia tinha o sabor inédito da violência — ele sabia. Era uma tocaia — ele sabia. E se embrenha nela com sarcasmo e paixão. A alegria não era bem vinda: fincava e doía. Arranhava e envolvia. E quanto mais sabia disto, mais ria. Mais conduzia o que falava para o nervosismo amargo das tiradas irônicas, dos comentários chistosos, dos trocadilhos e das rimas.

O riso tinha o efeito de pimenta em carne viva — ele sentia. Sem reagir. Fazia tanto esforço para se esgotar em sátiras, se esvair em paródias; fazia tanta questão de sangrar sua veia humorística, que parecia estar severamente intencionado a se destruir.

Falou, falou; falou muito. As palavras fluíam em golfadas de perdigotos e gargalhadas — era uma torrente de alegria. Parecia sangue, porque de sangue era feita. Do seu sangue. E da solidão implacável que, como sanguessuga, se amarrava nele.

Quem foge de si mesmo porque quer, sabe de antemão que não vai adiantar nada. Que mesmo que a estrada não acabe, o cansaço e o sono vêm. Ele toma café com Coca Cola, toma comprimidos excitantes — adia o sono. Espanta o cansaço. Recupera a euforia.

E quando ele pensou que poderia dopar a dor, viu que se atolava em mais uma das incontáveis arapucas que ele mesmo acionava. Era preciso rir e fazer rir o pessoal de sempre, que esperava sempre uma coisa nova, ele sabia. E se repetia. E ria, ria muito. Os outros riam também.

Ele não dormia e se drogava. Não comia, não chorava. Foi quando começou a beber. Os outros riam e pediam que contasse outra. De vez em quando, deixava-se envolver pela tristeza. Alguém dizia alguma coisa triste. Seus olhos assumiam toda a dimensão de sua dor. Sentia-se deslocado no espaço e se lembrava de que há muito tempo deixara de contar o tempo.

Então, pensou que poderia adiar e dor e viu que estava no limiar de mais uma das incontáveis armadilhas que ele mesmo improvisava. Mesmo assim, fez tudo para aceitar, mergulhou no rodamoinho do desespero e sucumbiu na festa.


São Paulo, 1973
 

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