Saltar para: Post [1], Pesquisa e Arquivos [2]

Marcos Resende Histórias

Marcos Resende Histórias

O Louco da Igreja

Pintura Universal 100.jpg 

Índice Histórias   Índice Geral 
01

Mas, de vez em quando se lembrava dela e era como se lhe possuísse o demônio da amargura.
Quando estava assim, ninguém chegava perto e a igreja ficava envolvida por uma nuvem de silêncio e desespero. Ah, como todos gostariam, então, de ajudá-lo, de recarregá-lo de felicidade; devolver-lhe um pouco da energia luminosa que todos os dias captavam dele; ele, que agora, mais do que o mais necessitado dos aflitos, precisava de uma pequena parcela dessa força para não morrer, e cambaleava despojado, esgotado, oco; ele — o amado, o moço da voz, do relâmpago. A imensa massa de amigos, imóvel nos bancos da Matriz, não conseguia desviar os olhos do rapaz — se arrastando desvairado e seminu pelo piso do altar, a roupa destruída por suas próprias unhas, o coração triturado pelas garras da memória que subitamente recupera-a com a volta da lucidez. Ah, amigo, fica bom depressa que nós já não agüentamos mais vê-lo nesta agonia. Ninguém sabe o que fazer, como agir, remediar, e nos ocorre o silêncio como forma de ajudar, e nos ocorre a angústia como se julgássemos estar, com isto, dividindo entre nós o peso de tanta dor.


— Alba! Alba! Amada corrosiva, monstruosa amada! Ave do mal, insensível colombina, olhar de venenoso brilho, facada de quatro cortes! Alba sem alma, sereia de asas de ouro, noiva da morte e do abismo; bela, bela como o escárnio e a maldade! — A voz lhe saía rouca, arranhada, soturna, como se viesse da garganta de uma caverna. Ele se arrastava, bramia. Por que Deus não o ajudava devolvendo-lhe a demência? Ah, o esquecimento bem vindo, a ambicionada noite nos labirintos da mente! As trevas nas têmporas, a loucura! E quem ousava aplicar-lhe a violenta pancada na cabeça, talvez a solução, o remédio?... A idéia, de boca em boca, ia e vinha pelo templo, mas ninguém se atrevia: e se não desse certo e piorasse?

Os que o conheciam há mais tempo tranqüilizavam os outros: — Já aconteceu algumas vezes nestes dois anos. Não se preocupem tanto, isto passa! — diziam, simulando naturalidade. E se não passasse desta vez? E se ele morresse, tão fraco, não come... O corpo sujo, os urros agarrados de sepulcro rasgando-lhe as cordas vocais, o sangue fugindo da garganta, da carne esfolada. O espetáculo da suprema angústia rastejando entre nós. Quantos somos? Mil? Mais de mil, muito mais. Impotentes, estarrecidos, humanos.

Nove horas depois, exatamente às duas e trinta e quatro da madrugada, a loucura, mais uma vez, voltou a se alojar no cérebro do moço, protegendo-o como carapaça, de suas recordações assassinas. Estava salvo.
 
02

Duas semanas antes de morrer, me chamou pelo nome que me dera (ele me dera um nome) e, depois de dizer coisas sublimes em sua maravilhosa linguagem, conduziu-me, como sempre à porta principal da casa de orações. Neste dia saí com plena consciência da vizinhança de sua morte e me decidi a bater de porta em porta, avisando um por um, rua por rua, a cidade inteira. Não foi preciso, entretanto. Em poucas horas, a notícia se espalhou como calúnia, e no dia seguinte, num raio de cinco léguas, todos os que o queriam bem se puseram a caminho, vindo a confirmar uma vez mais o que se dizia: em São Tiago das Bateias de Ouro não havia um só dos seus vinte e três mil habitantes que não conhecesse e não amasse o louco da igreja. As pessoas que correram para vê-lo, ouvi-lo, tocá-lo nos seus dias derradeiros, nunca o encontraram tão feliz, irradiando tanta força através de seus olhos vidrados e brilhantes de doido varrido. Nunca se ouvira tanta coisa sublime, imortal e verdadeira, desprendendo-se da disparatada e estapafúrdia língua.

O jovem incansavelmente distribuía força e distribuía muita, havendo quem, a princípio, não suportasse o ímpeto da emanação, tendo que ficar no fundo da Matriz até se acostumar. Volta e meia subia à torre e tocava, tocava, tocava os sinos, tocava com força, descia correndo e apertava seu coração de encontro aos outros, beijava alguns no rosto e proclamava sorrindo: O vento da máscara encarnada reconquistou a lâmpada, açucareiro náufrago.

03

Ah, passaram-se tantos anos que já nem sei como fui me interessar por sua história de malogrado amor e pela tristeza insuportável que lhe revestiu os muros da memória com o esquecimento e a loucura. Lembro-me de que fui um dos primeiros a saber, lembro-me de que ouvi contar e quis ver com meus próprios olhos o protagonista da desventurada boda. Mas, a metamorfose veio muito depois. Foi no dia em que Branca, minha mulher, chegou da fazenda, onde esteve passando uns dias com os parentes. Não, não tínhamos nos casado, ainda — eu me lembro porque estava apaixonado e com ciúme. Ela voltara diferente, muito íntima do primo, fria comigo; ela, que não tinha disso! Isto me dava o que pensar e o que sofrer, me predispondo a compreender na pele a desgraça do moço que não queria sair da igreja nunca mais, até que a noiva se arrependesse e voltasse.

Mais do que isto não me peçam, porque sei que não vou me lembrar. Tanto fiz que consegui me esquecer de quase tudo o que me aconteceu na vida, de forma que, minha memória (esse prejudicial baú abarrotado de trastes bestas) encontra-se, felizmente, bem lesada, quase nula. Peço, então, licença para começar a história. Peço atenção para o que vão ler. Peço respeito. Não pedirei, contudo, que me entendam, pois sei o quanto é difícil se apreender o sentido das palavras quando escritas e pronunciadas por mãos e lábios frios e irremediavelmente lúcidos e coerentes como os meus.

04

Ela se chamava Alba, não resta dúvida. Este nome perambulou por muito tempo pelas vozes e ouvidos de Bateias. Ele se chamava o Louco, o Doido, o Querido, o Bem Amado, o Amigo Grande. Seu nome, quase ninguém sabia, nem se cogitava disso. Ele a amava muito e iam se casar. Ninguém mais feliz do que o moço. no dia da cerimônia esperando a noiva, insidiosa esfinge.


A aflição normal, a demora, os amigos levantando suposições, conjeturas: é assim mesmo, noiva atrasa. A demora, a aflição, o suor. O tempo atravessando o limite do tolerável: quede a noiva? A tarde acaba por encher-se de zumbidos: tanajuras, muitas, milhares. Quede a noiva? Tanajuras por toda a igreja, em torno dos lampadários, verão, suor, tanajuras. E a noiva? O calor aumenta. Ninguém se atrasa tanto, a menos que tenha morrido — o calor é muito. Há quem saia: quem aguenta? E esta noiva que não chega? Os homens no boteco da praça refrescam a goela: é um calor sem vento, abafado, e o noivo: "coitado dele!" — as mulheres se compadecem, não poupam recriminações à "rapariga irresponsável", isto não se faz! Palavras de pesar, duras palavras de censura cavalgam no lombo do vento que se desprende dos leques; as damas de Bateias julgam — e não há entre todas elas, uma sequer que não condene. O calor: verão — e a noiva? Mais de uma hora de atraso, já é noite. Ela não vem — os convidados murmuram. Ela não vem — receia o moço preludiando seu desespero, seu desvario.

Mas ela chega trazida pelo som do órgão, deslumbrante e má. Vagarosa, atravessa a nave principal ao lado do pai, pisando na passadeira cor de sangue, de fora a fora estendida. Sorri, mas a quem ela engana? Só ao moço enfeitiçado que caminha ao seu encontro para conduzi-la ao altar. Ele sorri, estende-lhe a mão — ela faz que não o vê. Ele sorri, vai buscá-la. Ela faz que não o quer, apressa o passo, corre.


— O que foi que aconteceu? O que houve? Você viu? — perguntam-se os convidados. — Foi a noiva do moço que passou de passagem, desviou-se de seus braços, atravessou o altar e entrou na sacristia.

 
Nada disso eu vi, me contaram. Ver e saber das coisas e do moço só muito depois, quando minha curiosidade superou a aversão natural que eu tinha às igrejas e às desgraças, e fui conhecê-lo.
 
05

Pretendente da impossível prometida, noivo da desdita, o moço doido desliza como um fantasma através da igreja impiedosamente vazia, sem bodas, sem convidados, vai e vem, suavemente; lentamente, vai; com pés de nuvem caminha ao encontro da amada que não chega; desesperado espera — e semana após semana perambula pelo templo; dia e noite vagueia: ele a procura, celibatário da cama eternamente fria. O moço que eu vi na igreja parecia haver se apoderado de todos os direitos sobre a infelicidade; proprietário único da tristeza, senhor absoluto do infortúnio. Dele, a dor. A mágoa era dele. Circula incrivelmente apressado pelos corredores da Matriz, olha para a esquerda, procura, prossegue, enfia-se pelos bancos, hesita, vira-se para a direita, ansiosamente crava os olhos naquilo que deveria ser sua fugitiva dama, mas... Ah, que agonia mais sem jeito: seus olhos atravessam a ausência, o ar em desespero (sangue atmosférico) e devolvem desapontamento e fel às suas retinas. Vai até o portão principal da igreja; do portão não passa, volta. De longe em longe sobe à torre, olha a cidade inteira que acaba em pastos e montanhas logo ali, dá para ver, é tão pequena. O horizonte (ele olha) às vezes carregadinho de urubus, juntinhos como jabuticabas — outras vezes, ferido pelo pôr-do-sol, saindo sangue — outras vezes, ainda, dominado pelo ouro da manhã, quando o sol é moço e se vêem lá longe as vacas e os bezerrinhos (nem tão longe assim: dá para a gente ouvir os muuus).

Repeti a visita não me lembro quantas vezes (ele era triste). Alternava estados de sobre-humana agitação (quando andava, andava, andava, obsessivamente procurando, procurando), com total imobilidade: punha-se de pé num cantinho e ficava horas parado, quieto, duro. Nem piscar, piscava: ele era triste.

06

Até que um dia foi domingo e os que estavam na igreja, como eu, presenciaram a fantástica mudança, quando em seu coração adormecido coruscam os primeiros lampejos de alegria e ele corre, faz, acontece, solta-se pela casmurra escuridão do templo com a irresistível erupção da felicidade que desembesta a atuar em sua alma. Ah, o moço esta feliz! É ele quem voa pelo santuário em penumbra — norte e sul, o espaço é dele! É dele a palavra! E a esperança (a esperança é dele!). A alegria é dele — e a palavra! A palavra passa a pertencer-lhe, como se a herdasse de um deus, de um feiticeiro. E ele a recebe como um dom, toma posse dela: mais poderoso que um sábio, um camelô, um poeta. Ah, o moço está feliz! Flutua pelos oceanos serenos do espaço, cruzados apenas por ele e pela melodia do vento gerado em foles imensos e transmitido ao salão por dezenas de tubos de metal, fundindo-se ao ar que se respira, gregoriana brisa. Ah, o moço está feliz! De seu corpo a felicidade jorra, a paz aflora; desprende-se a alegria — coração radioativo: ah, este moço esparramando-se como chuva... Ah, este moço doido, raio e relâmpago, olhos faiscantes. Liricamente louco como a dança proibida dos adolescentes, como as serenatas submersas. Doido como os cangurus-relógio, a encruzilhada sensitiva, os bandolins com olhinhos sonolentos de carneiros. Ah, a gloriosa insânia solidamente soldada nas profundezas de seu universo! Os tentáculos da loucura encravados até a medula de sua mente. Ah, o moço — e o cheiro da loucura saindo de seu corpo, o rataplã-plã-plã antes da goiabada, a lua de nove labaredas, a lágrima, a.pérola, o escândalo — ah, este moço doido, dono desvairado da alegria — e ele corre! Corre pela igreja toda, canta, pula, grita, sobe ao altar, abraça o padre; quem se importa em vê-lo em desvario? Quem capaz de o enxergar com olhos de censura, dó ou zombaria? E por que diabos precisa de equilíbrio este maravilhosíssimo pirado? Mostra-se muito conversador, faz perguntas incompreensíveis às pessoas que lotam a Matriz, raramente espera pela resposta, inexplicavelmente acabrunha-se, encolhe-se a um canto, chora, subitamente consola-se porque ouve o tilintar das campainhas de prata tocadas pelos meninos, e quando a missa termina, excita-se com o movimento, mostra-se afável, cortês, ajuda as senhoras a se levantarem, acompanha-as até a porta, indaga-lhes polidamente dos sapatos voadores, da noite à milanesa, do seu amigo Natan (há tanto tempo escondido atrás de uma cristaleira), quer saber se os delegados ainda crescem em árvores, e manda lembranças a pessoas que nunca existiram. Fala fluentemente, tão bem como qualquer pessoa instruída, e, quando encontra quem o ouça com simpatia, conversa durante horas, calando-se, delicado, tão logo perceba no interlocutor o menor vestígio de tédio ou cansaço, o que dificilmente acontece, porque, apesar de quase nunca dizer algo que faça sentido, ele manipula o absurdo com tanto encanto, sua voz é tão agradável, seus dentes tão bonitos, que, quem se põe a ouvi-lo, não o faz por nenhuma outra razão: fica preso à simpatia do demente belo, rosto pálido, olhos fulgurantes, e lhe responde convicto, que os delegados não estão nascendo mais em árvores, e sim, em ostras; que Marlene Dietrich, ao contrário do que lhe haviam informado, não voa mais aos sábados de Aleluia, porque quem nasce em Viena faz tique-tique quando os acendedores de lampião uivam em tempos camarões — e o diálogo prossegue imprevisível como os tribunais e as mulheres, com possibilidades de combinações infinitas como os sonhos e os números, passando de barões a caranguejos, de brinquedos a ditadores, de flores a helicópteros, com o belo moço louco falando como um deus pagão, eloquente como um cigano, deliciando seu público de ricos e pobres, mulheres e crianças, velhos e adolescentes.

07

A igreja, por sua causa, se enchia diariamente. Alguns deles vinham para a missa das seis, e iam ficando, ficando, sem a mínima intenção de sair. Outros, só de passar por perto, ouviam de fora o som modulado e claro da voz do moço maluco e entravam e iam gostando, pois, nem bem se acomodavam curiosos nos bancos, eram efusivamente envolvidos por uma irresistível descarga de amor, alegria e esperança emanados do maravilhoso maníaco, que fazia questão absoluta de dispensar especial atenção a cada um que chegava, reconhecendo-o na maior parte das vezes e chamando-o carinhosamente pelo apelido. Nas poucas ocasiões em que julgava jamais ter visto o recém-chegado, aproximava-se exultante dele, atirava-se aos seus braços, perguntando-lhe o nome e a cor de seu destino (a todos, invariavelmente), estabelecendo as mais inesperadas associações entre uma coisa e outra, e tirando conclusões as mais inacreditáveis, como a que lhe ocorreu e me disse, no dia em que nos conhecemos: "a menina quando sonha com algodão de sangue azul, dificilmente dá banhinho numa estrela barriguda" — afirmação que me deixou embasbacado, não sei ao certo se pelo mistério oculto nas paredes das palavras, ou se pela combinação dos sons, ou ainda, se pela forma definitiva com que foi proferida: seus olhos capturando os meus, me arrastando, escravizando, doce torpor — imperecível, inalterável no espaço e na velhice, pois os anos que cresceram como um matagal sob minha vida — e são tantos — anestesiaram todas as lembranças daquela fase de meu passado, mesmo as mais agudas e felizes, não arredando, contudo, da memória, aqueles olhos de relâmpago de sangue azul, aquela voz de estrela barriguda, a sua miraculosa fórmula de deixar moleques e desembargadores completamente à vontade, naquele ambiente tão desfavorável e rígido; a sua infalível chave a abrir todos os cérebros e corações, a ponto de um general francês, uma prostituta analfabeta e feia, um papai noel, uma menina surdo-muda, uma condessa espanhola, um assassino e um comerciante, com pouco mais de meia hora de bate-papo, tornarem-se muito amigos, tão amigos que até hoje, sempre que podem, se reúnem para matar a saudade, falarem do amigo comum, o alienado inesquecível, e dissiparem o ceticismo das pessoas que tentam explicar o fenômeno com termos e argumentos muito mais incompreensíveis do que as belas palavras soltas do querido doido, que, sem dizer absolutamente coisa alguma (como as letras das músicas estrangeiras, para quem não sabe a língua), operava prodígios de comunicação e entendimento entre as pessoas, amava-as à primeira vista e à primeira vista era amado, porque tudo é tão simples que me envergonho de meu cérebro lúcido e impotente, se comparado ao seu, flutuando na misteriosa estratosfera da loucura; agindo, porém, como o mais inteligente e amoroso dos homens, como o mais cativante dos líderes, isto sem que se diga de sua genialidade em conciliar cortesia e ternura, respeito e intimidade, não abrindo mão de seu privilégio (ele dava a entender que considerava um privilégio) de acompanhar pessoa por pessoa até a saída da igreja, de onde nunca passava, ocasião em que a tratava como se apenas ela existisse, importasse, merecesse. Suas atenções, seu magnetismo bom, sua transfusão de paz, ele os repartia com serenidade (como quem tem diante de si todo o tempo do mundo) e com veneração, como se o fizesse ao mais poderoso dos reis, razão, no meu entender, mais do que suficiente para explicar porque não houve uma única criatura que se tornasse invulnerável ao seu fascínio.


08

Duas semanas antes de morrer, me chamou pelo nome que me dera e, no tom de quem está transmitindo a mais empolgante, festiva e surpreendente notícia de todos os tempos, disse: — "Ah, o violão-Picasso! Que limão, ou deslimão, querido giroscópio, a rinha hipotecou? Chaves e tufões? Trajetória de vitrificar marés? Não! Pétalas de escavadeira, retretas e gaviões, em síntese, recompensarão blim-blão, até que a bola ao cubo ressurja num ofidiário."

 

Expirou suavemente após tumultuada agonia em que a lembrança de Alba o martirizara como nunca se vira antes, nem mesmo nas manifestações mais dolorosas, mais cruéis. Ah, amigo maior, moço querido, quem como você em sua extraordinária maluquice? Contra os ecos de sua passagem pelo mundo, rosnam os matemáticos, debocham os computadores. O que sobrou de você em nossa memória, contudo, faz com que a verdade imutável por ambos proclamada, pareça pequenina e pobre, palavrório inútil, incapaz de mover uma fibra sequer do coração.

 

Ele se chamava o moço, o noivo, o louco — seu nome, ninguém sabia. Ela se chamava Alba, a leviana. De onde ele viera? Diplomas? Haveres? Família? Em vão, as gazeteiras da cidade mobilizaram suas antenas: quase nada se apurou. A moça o conhecera na capital, numa festa. Namoraram na cidade grande, noivando na fazenda do pai dela; pouca gente foi, só os muitíssimo chegados. Seu nome, no luxuoso convite impresso em pergaminho, era absolutamente desconhecido dos convidados."Mas ele é tão simpático:" — diziam — "tão triste!"...

E essa noiva que não vem? As tanajuras picam os leques das madames, com seus ferrões de alicate. Mas, ela chega trazida pelo som do órgão, deslumbrante e má. Ele sorri — estende-lhe a mão. Ela corre, atravessa o altar e desaparece. Lá fora, um rapaz a espera num carro puxado por dragões. Os convidados que saíram ao seu encalço, chegam a tempo de ver a nuvem de poeira levantando-se na estrada.
___________________________________________________________

E é tudo. Nenhuma lembrança a mais me ocorre, por mais que eu tente rebuscar na memória, datas, frases, referências. A chama da lamparina já se faz inútil diante dos primeiros clarões da madrugada. Os velhos ossos me doem impertinentemente. E agora que tudo está nestes papéis, sinto-me tão cansado e triste, que poderia morrer. Daqui a pouco, é dia. Mais um dia ensolarado e longo! Cada dia se torna maior que o outro; crescem mais os corredores desta casa, cresce mais a casa, a dor, a vida.

Os jornais da semana trazem impressa, preto no branco, minha oferta: quem quer comprar um velho sobrado a preço de ocasião, quem quer comprar um desespero? Ah, esta memória, esta memória que, sacudida durante toda a noite, ameaça perigosamente se acenderl Quem quer comprar um cérebro semilúcido? Estou vendendo tudo. O preço de minha vida é tão pequeno que nem dá para pensar duas vezes. Quem quer? Depois de tudo liquidado, vou sair pelo mundo. Por que? — não me lembro ainda. Mas, vou me lembrar... Procurando, eu diria.

(Ah, um facho de luz repentino iluminando-me o cérebro: o coração dispara.
— Albaaa!!!
Pára o coração..)

São Paulo, 1976


Índice Histórias
   
Índice Geral