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Marcos Resende Histórias

Marcos Resende Histórias

O Circo de Todos os Sonhos 02

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01.
Para que tudo fique devidamente explicado e ninguém venha, depois, botar defeito me chamar de mentiroso, vamos registrar o preto no branco, acertar os ponteiros, desfazer as dúvidas agora, que ainda dá tempo, porque daqui a pouco, a narrativa desembesta morro abaixo, e aí não há quem segure, fica todo mundo por entender: o que é que foi? Como é que foi? Quem? Quando?
Comecemos por deixar bem claro as datas: o cabaré voltou a existir no sábado de dezembro, dia 19, número mágico e citado nesta história até a exaustão. Agora são seis horas da manhã do dia 22, terça-feira, quarto dia. Helicópteros da polícia da capital, desde domingo sobrevoam a região. Voam baixinho, não pousam. O piloto olha através de binóculos. Não enxerga ninguém, as ruas estão vazias.

Por que? Mal se puseram a par da volta do cabaré, e viram com os próprios olhos a materizalização do absurdo, as donas de rendez-vous e boates, assim com o as inquilinas, não quiseram saber: juntaram dinheiro e coisas de maior valor, a roupa imprescindível, trancaram bem trancados portas, janelas e e portões, agarraram seus homens e, as que podiam ir de carro foram de carro, as que não podiam foram como puderam, mas com pressa — eu juro que estavam com pressa!

Sobrou a periferia. A ralé. As putas pretas, grávidas, banguelas. As putas velhas, paralíticas. As putas com câncer. Os cachaceiros estuporados. Cidadãos e cidadãs que não foram avisados de nada. Se foram, nem perceberam. E só começaram a se dar conta de que alguma coisa diferente estava acontecendo, quando a polícia resolveu apanhá-los um por um, à guisa de "repressão enérgica à prostituição e a ao vício, ao mal que ambos inoculam na sociedade, solapando os alicerces da família, da tradição, da moral e dos bons costumes".

"Há que se coibir o abuso, há que extirpar a corrupção, sob qualquer forma que ela se nos apresente, pois até o sobrenatural, até o próprpio Belezebu, burlando a vigilância perpétua dos anjos, lança uma luva de desafio no rosto dos homens de bem, simbolizada por este antro diabólico de subversão carnal, expelido na noite de sábado pelas chamas do inferno!" — conforme trecho da "Mensagem de Alerta" que o Meritíssimo Juiz de Direito, Bacharel Alberto Lopes Medina dirigiu ao povo, através dos microfones da Rádio Jornal de Calendas.

De forma que a briosa polícia apanhou um por um os pinguços (velhos, com cirrose), as putas desfiguradas e — o de sempre: surras, pequenos divertimentos, hospedagem por vinte e quatro horas. No dia seguinte, olho roxo, corpo em petição de miséria e... rua!

O Cabo Bernardes e seus homens, não fosse a ameaça de excomunhão feita por Padre Camilo, voltariam de muito bom grado ao "antro diabólico". "Jamais sairíamos de lá, resistiríamos até o fim, se disso dependesse a segurança da cidade e da pátria!" — proclamaram desassombradamente, merecendo aplausos e elogios do senhor prefeito, do senhor juiz de direito e de todos os demais senhores e autoridades civis, militares e elesiásticas.

Todos naquela terra eram muito religosos e medrosos: trancaram-se em casa, enfiaram-se em fazendas, roças, chácaras, sítios, ceveiros, casas de campo. Entocaram-se nas cidades vizinhas: Três Estrelas, Novais de Meneses, Bocaxim, Marueiros, Cordiópolis, Caravana. Muitos se mandaram para as capitais. Alguns emigrantes, acreditando mesmo no fim do mundo, voltaram aos seus países para rever os parentes, antes da hecatombe universal: alemães, italianos, sírios, portugueses, espanhois, sul-americanos, um russo, um casal de gregos e um hindu. Em Calendas, além das autoridades e funcionários públicos, permaneceram, no máximo, vinte mil pessoas.

No quarto dia, terça-feira, 22 de dezembro, às dez horas da manhã, os fantasmas cismaram de se mostrarem à luz do sol. Sem ultrapassar o perímetro destinado à zona boêmia, saíram às ruas, em grupo, descontraídos, felizes:

deputados,
médicos,
gigolôs,
poetas,
fazendeiros,
músicos,
padres,
bailarinas,
cozinheiros,
lésbicas
garçons,
estudantes,
comerciantes,
bancários,
militares,
vigaristas,
carpinteiros,
viajantes,
pederastas,
engenheiros,
capitalistas,
padeiros,
advogados,
dentistas,
professores...

E as maravlhosas putas vestidas com trajes leves, usando leve perfume, levando chapeus, sombrinhas, abanando-se com leques, despreocupadas e alegres — de tudo fazendo festa, enxergando festa em tudo.

A escória, o rebotalho, gente que, por um triz, não virara vegetal ainda, aparece à janela, à porta. Espiando. Maria do Vinagre, Ana Manca, Ana Fuinha, Timburé, Fuminho, Marieta 311, Francesa, dona Miau, Sebastião do Pé Inchado, dona Sapa, Canuto. Espiando.


Os cavalheiros e as damas entravam nas boates e nos rendez-vous trancados. Corriam em cima dos trilhos. Pegavam terra com a mão. Trepavam pelos telhados. E tudo queriam ver, xeretar, fossar, mexer. Se alguém pediu, eu não sei. Se alguém pagou, não fui eu. Só sei que uma orquestra resolve enfiar baile na rua. E quem resiste? Você? Os pares vão se formando. Naturalmente. Espontâneos. Cresce a festa, cria corpo. Helicópteros vâo e vêm, balanço de colibri.

A ralé ordinária e maldita, pouco a pouco vem chegando, riso acanhado, sem dente. Timburé, Ana Fuinha. Por ser a festa narua, se julgam sócios do clube, se põem a dançar também. E se aproximam sem medo, porque medo não têm, de nada. Fossem ter medo, teriam da vida, da forme, da miséria, dos micróbios, da polícia. Marieta 311 se agarra com Sebastião do Pé inchado, Fuminho com Francesa, Canuto com dona Sapa. Nos megafones, os pilotos gritam ordens, ameaçam. Mas, ouvir como, meu capitão, com a orquestra tocando tão alto? 

 

02
Valéria Basilissa Cavalcanti de Albuquerque, cognominada a Dama da Noite — prostituta por amor, nobre por acidente, milionária por azar ("Meu dinheiro me pesa mais do que uma cruz") e por sorte, muito bonita, pega um rapaz pela mão. Desaparece com ele na Cantina Moulin Rouge, deserta e sem cadeado. Atravessam as paredes. O salão rústico. Europeu. As pareces recobertas com madeira envelhecida. Caboclos pitando palha, pretos velhos de cócoras, índios, búzios e serpentes entalhados na madeira. As mesas toscas. Os bancos. O assoalho muito limpo. Asseio, ordem, bom gosto.

Atravessam as paredes. As mãos do menino tremem. Valéria é bela e cruel. As mãos do menino suam. Valéria é a mais bonita, a mais desejada, a mais temida. As mãos do menino apertam. Atravessam as paredes. O quarto é todo de espelhos. A cama colonial. Espelhos cobrindo teto, paredes, chão.

— Despe-te inteiro, meu anjo — ordena Valéria ao jovem. 
Ele obedece. Ele treme. Valéria dos Trinta anos. Fama de má e de boa.
— Estás com medo de mim meu bem? Responde! vamos, meu animalzinho assustado, meu pombinho, estás tremendo? Tens medo, meu amor? Hum?
— Tenho... Sim, senhora..
— Como és tolinho! Se me obedeceres direitinho, não te acontecerá nada! Quantos anos tens?
— Dezesseis.
— És estudante?
— Sou.
— És bem jovem, é verdade... (olha-o de cima a baixo, nu...) E bem crescido, também. Ajoelha-te a meus pés!


Ele se vê refletido em todos os espelhos, até infinito. Em cima, em baixo, à direita e à esquerda, em frente, atrás: seu terror multiplicado pelo desejo, multiplicado pela expectativa, multiplicado pela surpresa. Valéria, uma cama e ele, girando em torno de espelhos — caleidoscópio gigante.

Truque, jogo de espelhos — e tudo desaparece. Olha para cima e para os lados: vê espelhos. Cada espelho contém um outro espelho dentro de si, como se cada um fosse um universo. Percebe que se perdeu, procura por si mesmo e não se vê. O quarto roda como uma roleta de espelhos. Sente-se intoxicado de espelhos que se refletem. Envenenado. Quer fugir. Levanta-se. Corre. Não há portas, há espelhos. solhepse áh :satorp áh oãN. A tontura. Náusea. Vontade de vomitar. O murro, em vão, no indestrutível. O reaparecimento súbito da cama, coberta com lençois implacavelmente brancos e limpos. Localiza-se geograficamente: pode se situar atrás da cama embaixo da cama, em cima, à direita. Experimenta e dá certo. Serve para tranquilizá-lo um pouco: a lógica voltou a vigorar no mundo. Medo. Náusea. Mal-estar.

A cura através do susto: Valéria — entre a cama e ele — ressurge loura e de azul. Sorriso nos lábios. Desdém. Chicote na mão.
— Não te ordenei que ajoelhasses? Como poderei confiar em ti, se já me desobedeces na primeira ordem que dou? Terei que te castigar. 
Pálido, rígido, de joelhos, ele não tem o dizer. Valéria passeia em volta. Fala-lhe com carinho:
— Sou tua Dona, tua Senhora, tua Rainha, sabes? E tu, meu escravo. Olha nos meus olhos, meu amor; entre nós, deverá existir apenas uma pequenina lei...         (Valéria acaricia-lhe o rosto com o chicote, olhos perigosamente azuis como armadilhas no mar) — Eu mando e tu obedeces. Alterna inclemência e ternura. É ríspida, desdenhosa e doce. — De vez em quando, me desobedecerás de propósito. Por querer. Para que eu possa te maltratar com este chicote. Se eu perceber que estás deixando de desobedecer para não seres castigado, te açoitarei com maior furor. E espalharei obstáculos e ciladas, construídos com argúcia, para que tu não consigas cumprir o que ordeno. Cairás como um coelhinho. Ai, que delícia! Como apanharás! Bate nervosamente o pé no chão.
— Beija meus sapatos, escravo! —  Ele vacila. — Beija meus sapatos, escravo! O chicote estala no ar, não o atinge: avisa-o. Ele beija. — Tira meus sapatos, escravo. Dancei tanto! Meus pés estão suando!

No silêncio do quarto, ouve-se apenas a respiração pesada do servo e da soberana e ... o lepe! da correiinha do sapato sendo desatada.
— As meias. Cuidado para não desfiá-las. 
Valéria — coxas sublimes 
— A calcinha! Vamos, não tenhas pudor, seu bobinho!
As nádegas novas e tenras, opulentas e rosadas. 
— O sutiã! Assim... Tenta de novo... É assim mesmo, meu pequeno selvagem, meu pequenino bugre.
Seios redondos. Soberbos. Biquinhos firmes. A fêmea em pêlo. E o perfume.
— Como vês, escravo, me puseste nua. Deita-te, pois, a meus pés para as formalidades de praxe, o ritual de posse. — Grita com rispidez: — De bruços, o rosto colado ao chão!

Ela põe o pé direito sobre a nuca do menino.
— Eu, Condessa Valéria Basilissa Cavalcanti de Albuquerque, faço de ti meu escravo, meu cativo, coisa minha, objeto meu; e sobre ti assumo o direito de vida ou de morte, assim como o de te infligir punições, segundo minha vontade, por qualquer motivo, cabendo unicamente a mim decidir a natureza do castigo, que correrá por conta de minha imaginação e capricho, para gozo meu, deleite meu, para meu prazer e divertimento.

Senta-se na cama.
— Aproxima-te.


03.
Quarto dos Espelhos. A Condessa Valéria Basilissa Cavalcanti de Albuquerque sentada sobre a cama, muito loura, perigosamente bela, soberana e nua. A uma distância de cinco metros, um menino dominado pelo terror, deitado no chão de espelhos, tentando recuperar o sangue frio para arquitetar um antídoto com o absurdo, e fugir.
A moça, entetando, não lhe dá tréguas.
— Aproxima-te.
Ele faz menção de se levantar.
— Arrastando-te, escravo. Não ouses ficar de pé na presença de tua Senhora! Vem... Assim... Deita-te de costas para o chão, sob meus pés. Vira-te. Não, aproxima-te mais! Quero pisar em ti. Acariciar teu peito. Pisar!
Ele solta um gemido seco. Ela se pusera de pé, de sopetão e equilibrando-se sobre ele. Ri. Senta-se de novo.
— Agora, desce ainda mais mais teu corpo. Assim... Quero pôr a planta de meus pés em teu rosto. Gostas. São macias? Responde!
Calca-o com os pés.
— Responde!
— São.

O que ele via eram dois pés enormes lhe esmagando a cara. Via a cena estampada no teto, à direita, à esquerda, no chão: ele, deitado no espelho e Valéria Basilissa Cavalcanti de Albuquerque, com todo o peso de seu nome, seu condado, seu fascínio desumano e seus pés macios e bem feitos, sobre seu rosto.
— Lambe meus pés, escravo!
Ele ia se sujeitar. De algum tempo para cá resolvera cumprir passiva e automaticamente a vontade dela. Ele já ia começar a fazer o que ela queria. Um segundo de reflexão e, ferve-lhe o sangue, um raio de revolta ativa-lhe o cérebro, o corpo de atleta; num pulo, põe-se de pé, dá um salto para trás e imobiliza-se em posição de ataque, como os lutadores e as feras. No rosto, raiva. Nos olhos, raiva. Fita Valéria. Ela sorri como se estivesse à beira de um orgasmo. Ergue o chicote, imperativa:
— Ajoelha-te, escravo.

Dentro dele, a luta entre o seu instinto de macho, atavicamente poderoso, dominador, soberano e arrogante, conta a fêmea, secularmente submissa, atrevendo-se, agora, a exigir-lhe coisas a pisoteá-lo.

A primeira chicotada acerta-lhe o ombro esquerdo, a seguinte, pega-lhe numa das pernas. Ele, como um leopardo, atira-se sobre a mulher. Escorregadia e ágil, Valéria se diverte imensamente (chicoteia-lhe as costas), prometendo não lhe bater com muita força, porque é a primeira vez e ela não quer machucar logo no princípio, um escravo que ainda lhe trará tanto prazer (atinge-lhe o rosto, sangra) no futuro, como está lhe dando agora, e lhe agradece (a chicotada pega-lhe em cheio no peito) a oportunidade de domar seu escravo com as próprias mãos, porque, nem sempre...
Ele consegue tomar-lhe o chicote.
Ela se assusta. Olhos azuis dardejam desprezo, cólera. Depois, medo.
— O que vais fazer, agora? Me bater?
— Sim, minha senhora, se vós me permitirdes.
Desespera-se até as lágrimas.
— Por favor, não faças isso!
— Não me impedireis, não é?
— Eu te suplico, me perdoe!
— Não adiantará.
— Eu te peço de joelhos!
— Nem assim. Se tendes medo ou não de apanhar, não vem ao caso, minha senhora. Vosso pedido de perdão não me comove. Vossa beleza não me sensibiliza.
Levanta o chicote. Valéria solta uma gargalhada. O chicote se desmaterializa da mão dele, indo se materializar na mão da moça. Ele toma impulso para se lançar como um projétil sobre a condessa. Escorrega e cai. Em seguida, não consegue mais se pôr de, pé porque o chão tornara-se movediço sob seu corpo, permitindo-lhe, no máximo, que ficasse de joelhos.

Valéria, vagarosamente, chega até ele. Pega-o pelos cabelos. Solta-o. Fala com brandura.

— Se eu te avisasse que seria infrutífera qualquer reação que porventura pudesse pretender, tu me terias privado do prazer que senti quando te surrei; quando caíste impotente ao chão e não conseguiste mais levantar-te; a cara de pânico que fizeste, quando meu chicote sumiu de tua mão.

Açoita-o nas costas, uma, duas, muitas vezes com muita força, com ódio, com maldade. Ele urra de raiva e de dor. Ela grita para ser ouvida, enquanto o chicote espanca, golpeia, fustiga, açoita, vergasta:  

— Estás vendo? Posso fazer de ti o que bem entender. Castigar, pisar, bater. Se levantares, cairás. Duvidas?
Empurra-o levemente com um dos joelhos. Ele perde o equilíbrio, precipita-se ao chão. Ela passa-lhe o pé no rosto, lentamente, por maldade, por capricho. Pisa-lhe braços e mãos, com delicadeza, para humilhá-lo, não para machucá-lo.

Longo silêncio. Vargosamente, como veio, Valéria volta à cama.
— Onde paramos, mesmo? Ah, sim, estavas lambendo a sola dos meus pés. Vamos recomeçar. Aproxima-se, escravo. E — não te esqueças: arrastando-te!

Quando ele chega à distância que ela deseja, pára-o com o pé.
— Recomecemos. Tira meus sapatos.
Ele estende a mão. Recebe uma lambada.
— Com a boca, escravo. Não ouses colocar tua mão em mim. Tu te rebelaste. Não mereces contemplação. Com a boca, rápido!
O moço volta a fazer tudo mecanicamente.
— Eu te implorei que não me batesses, não foi? Era fingimento, é claro, mas tu não sabias disso e te recusaste a me perdoar.
Os olhos azuis fuzilam. A boca muito vermelha, sensual e demoníaca. A voz, em tom de ternura:
— Escravo, implora, pede, roga, suplica, que talvez eu te conceda aquilo que, brevemente vais desejar com todas as forças de tua vontade. Suplica, escravo, implora para lamber meus pés!

Ele não lhe respondeu. Não moveu um músculo do rosto. Foge para dentro do espelho mais próximo, depois para o seguinte, para o outro, para um outro mais distante e depois para um outro e para um outro além. Mas, de nada adianta, porque está acontecendo a mesma coisa em todos os espelhos. Silêncio. Passaram-se quase cinco minutos. Estranho... Por que estaria ela lhe dando tanto tempo?

O espelho sob seu corpo cai bruscamente de temperatura. O menino olha para a mulher.
— A nossa brincadeirinha de gato e rato está apenas no introito, no aperitivo.
O espelho se transformara numa lâmina de gelo. Ele tenta mudar de posição. Não consegue. Geme, grita, urra:

— Eu vos peço, deixai-me lamber vossos pés!
— Ah, mas que escravo fingido!... Quero crer que estás querendo me lisongear.... — dedinho na boca, ela é a crueldade sob a forma de ironia.
— Não, não! É verdade! Deixai-me lamber vossos pés, eu vos imploro, minha senhora!
— Que garantia tenho eu de que estás sendo sincero? Há pouco me agrediste, querias até me bater.
O gelo passa a produzir leves descargas elétricas que, gradualmente, vão ganhando intensidade. O moço quase enlouquece:
Eu vos suplico, minha senhora, deixai-me obedecer todas as vossas ordens. Nada mais desejo além disso, juro! Sou vosso escravo. Serei fiel para sempre. Por favor, chicoteai-me, pisai-me, deixai-me beijar vossos...
Desmaia.

04.
No Quarto dos Espelhos, o jovem acorda. O chão volta a ser como antes. Valéria o observa. Doçura azul nos olhos. 
— Agora nos daremos bem, não é assim, meu anjo?
— Sim, senhora.
— Vem, deita-te de costas, sob meus pés, como no início.
— Sim, senhora.
— Lambe meus pés, escravo!
Pisa-lhe o rosto com o pé esquerdo e comprime o direito contra seus lábios.
— Beija meus pés, escravo!
Pisa-lhe o peito com o pé esquerdo e comprime o direito contra seus lábios.
— Beija meus pés, escravo!
Ela o espezinha o quanto quer. Ele vence todo o orgulho. Agora, calça-lhe, com a boca, chinelos de cetim, porque ela não pode pisar no chão frio.
— Estamos nos dando tão bem, não é? Quero que sejas muito feliz comigo. Serás meu cavalo. Sim, serás meu cavalo. Deu-me vontade de cavalgar-te. Prepara-te. De quatro!

Ele se põe na posição. Valéria Basilissa pula em seu lombo, despudorada, mandona e dona. Deliciosa e nua. Com as coxas, pressiona-lhe o corpo para que ele corra.
— Vamos, vamos, mais depressa! Galopam ao redor da cama. Valéria parece estar satisfeita. Ri muito. Os chinelos arrastando-se ao chão. — Mais depressa, cavalinho! Tenta estimulá-lo com a chibata. Difícil, porém, acertá-lo na posição em que estão. Pega seu chinelo de couro e agora deu certo, o cavalo, na imaginação da moça, dispara como um corisco. Valéria, impiedosamente, batendo-lhe nas nádegas com o couro. Sua fruta toda molhada. Escravo e dona molhados de orgasmo e de suor.

— Leva-me até a cama. Estou fatigada, escravo. Ela desmonta molemente. Cai sobre os lençois. Ele deita-se no chão como um cachorro velho. Ouve os gemidos da mulher, não os entende a princípio ou não lhes presta atenção, ou crê não ser da sua conta, até, por fim, dar-se conta de que aquilo é dengo de fêmea, berrante chamando boi.
— Lambe meu corpo inteirinho, meu anjo.
— Estais mandando?
— Estou pedindo, meu bichinho, meu carneirinho, meu homem.

Ele avança. Puxa-a pelo braço. Faz com que suba à cama. Subjuga-a com o próprio corpo. Suga-lhe os lábios. O macho desperta erguendo o símbolo de sua grandeza. Ela o toma entre as mãos, aconchega-o entre os seios, acaricia-o como rosto. A língua morna e hábil contorna o fálus com volúpia. Como um sol, ele se põe entre os lábios dela, majestoso e invencível. Oculta-se em sua boca, como se nuvem ela fosse. A língua da moça desce e devora as duas esferas vivas. Aquece-se ao calor da boca. Desliza pelo peito rijo, demora-se no umbigo, sobe às orelhas, lasciva. Valéria, ao pé da cama, beija-lhe as coxas, os joelhos. Beija-lhe os pés, submissa; escrava, lambe-lhe os pés. Ele a possui, descansado. Sem pressa, sem vingança. Procura os seios, desfruta-os. Com lascívia, lábios, lingua, busca os caminhos da flor, que se oferece como fruta, ansiosa como noiva, indomável furacão. 

Sobre o corpo de Valéria solta o peso de seu corpo. Penetra-a com bravura, sem rancor, honestamente. Ela sente, corcoveia. Ele aperta-lhe o arreio, puxa a rédea, esporeia. Ela pede, ele lhe bate, esbofeteia-lhe a cara, dá de chicote em seu dorso, mas, sem tirar, cavaleiro.

Chega a hora de Valéria, fogosa, resfolegando. Ele, agarrado à potranca, suando, enfiado nela. Ele jorra, seiva forte. Ela ainda espinoteia. O fogo já dominado vai se extinguindo, se apeia. Na cama, exaustos, se aquietam, cada qual para o seu canto, relaxando, adormecendo.

São Paulo, 1976.

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