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Marcos Resende Histórias

Marcos Resende Histórias

Testamento: Karisme e Eu - Obelisco Enferrujado

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Karisme, você testemunhou sozinha a cena das cinzas, e a solidão e o silêncio do meu sorriso remendado, em resposta ao seu entusiasmo quando confessou: "É lindo isso!". Viu e me pediu as cinzas. Não pediu explicação. Fez bem — porque foi perguntando e perguntando tudo, que me incinerei também. Não quero que aconteça o mesmo a qualquer outro alguém no mundo, e muito especialmente, eu não desejo ver você no inverno que atravesso, em cismas, cinzas e cimento.

Involuntariamente, Karisme, você contraiu uma obrigação, tarefa ou missão, porque ninguém será o mesmo, depois da visão daquelas cinzas. É uma dívida que você passou a ter comigo: a de desenganar os enganos, desmantelar as descrenças, esterilizar as raízes das futuras cinzas. Percebo em você, de vez em quando, uma certa vocação para cinza. Mas, você não vai deixar acontecer isso outra vez, porque eu lhe dei um fragmento do meu botão-de-gelo. Em troca, você (arranje-se) fará dele um ramalhete de valentia. Terá que socorrer as pungentes necessidades dos adolescentes feridos pelo desentusiasmo e pelo ceticismo e pelo desencantamento. Antes que virem cinzas. Como eu.

Mas, não espere nada de mim, porque estou morto. Incinerado. Para pagar meu pecado de não crer, e, simultaneamente, para pagar meu pecado de crer — mas, sem aceitar os símbolos e estandartes.

Eu te dou o direito de me esquecer. Todavia, te aceno com as cinzas a todo instante. E — se for preciso — te violentarei com elas, te esmagarei com elas, te ensanguentarei com elas, em pesadelos mais frequentes do que a sede. Posso esperar. Você, não. Eu conquistei o direito de esperar tudo, de exigir tudo e não fazer mais nada. Sim, porque fui triturado pela reação da natureza e promovido a pó. Assumo o direito de proclamar você um manancial de coragem. Um poço de combustível. E você terá que ir de porta em porta distribuir avisos.

Avise todo mundo que é preciso acreditar e acreditar e acreditar mais ainda. Em qualquer coisa. Não importa no que. Que engendrem mitologias. Mas, acreditem. Acreditem, por exemplo, na primavera. Na esperança. E acreditem no verde, nos vegetais, nas veredas. Nos crepúsculos e auroras. Nos herois e divindades. Nas festas e nas cantigas. Nos natais e aniversários. Nos girassóis e nos sonhos. Espaçonaves. Boates. Nas pipocas, nas conquistas, nos editais e no amor. E é preciso confiar na vida, nas crianças e nas lendas.

Nos abantesmas e arautos.
Nos labirintos e lírios.
Nos levantes e nos loucos.
Nos iguanas e idílios.
Nas gamelas e gaivotas.
Nas hamadríades e horóscopos.
Nos fantasmas e nas flâmulas.
Nas calhandras e ciprestes,
caleidoscópios e címbalos.
Nos eldorados e esfinges.
Nos druidas e nos dragões.
Nos eremitas e espelhos.
Nos paladinos, nas putas.
Nas mandrágoras e mágicos.
Nos nostradamus e nautas.
Nas ondinas e oráculos.
Nos parapeitos e pífanos.
Nas retortas e nas rocas.
Nas salamandras e silfos.
Nas tartarugas e tribos.
Nos unicórnios e uivos.
Nas vestais e velocinos.
Nos zimbórios e nos zéfiros.

É só. Você me viu. Pediu. Não perguntou. Mas, testemunhou a solidão e as cinzas e o silêncio e uma glacial espera. Espera semelhante à das estátuas de bronze dos grandes homens, que as gerações passadas reverenciaram. E hoje não passam de ornamentos ridículos, embolorados, feios.

E é assim que espero. Como os monumentos. Petrificados. Esquecidos. Desconhecidos. Escarnecidos. Enferrujados. Como eu.


Varginha, 1971


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