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Marcos Resende Histórias

Marcos Resende Histórias

Karisme, Extravagante Estrela

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Na última vez em que vi Karisme, havia alguma coisa de choco no vento. Estava amanhecendo e ela falava muito, como se quisesse atordoar um pensamento triste. E ela falava depressa, como se fizesse questão de não entender nada do que dizia. Eu não sabia o que pensar, o que dizer e... eu só repetia uma cosa: eu te amo, eu te amo.

Karisme baixou os olhos. Ameaçou um sorriso irônico e quase bocejou. Cortou um pedaço de grama que ia mordendo e cuspindo fora, e disse que eu sou como os outros: que eu falo o que não tenho coragem de pensar, e penso o que não falo. Depois, me perguntou se eu converso com as grutas, se tenho medo de um sábado, se amo os prismas e os caleidoscópios, as fadas e os pirilampos. E ela mesma ia respondendo: não, não.
Eu lhe pedi: por favor, Karisme, acorde! Você está cercada por fantasmas. Eu tenho um coração e uma paixão. Eu tenho uma promessa, um planeta, um plenilúnio e... Eu tenho a realidade aqui. Agora. Olhe para mim. Olhe, Karisme.

Karisme sorri. E as folhas de todas as árvores parecem perecer perante a maravilha. E ela diz que não me pediu amor. Não me obrigou a sentir nada, que eu esquecesse, que é melhor.
— E você me pediu isso justamente quando eu não podia mais controlar você dentro de mim, Karisme. Ela responde que amanheceu. Que eu a esquecesse, que ela ia ter que ir embora, mesmo.

E pulou do chão. Correu. Voltou saltitando meio dançando, e havia um mistério em seu vestido que nunca pessoa alguma iria solver — ou mesmo perceber.
Pega minhas mãos. Sorri com aquele sorriso azul que só Karisme sabe fazer. Me olha com meiguice. Me beija. Quando Karisme beija é como se houvesse uma lágrima distraída despedaçando qualquer inclemência. Amarrotando qualquer inflexibilidade. — Karisme, eu estou aqui. Você está comigo. Nada conta, você disse. Eu te dei eu. Será que eu não sou mais nítido que os teus fantasmas?

Karisme, mulher. A beleza de Karisme suave como a sombra. Karisme inteira maravilha ensurdecedora que se debulha em clarão, em clarim, e que de tão linda, de tão escancaradamente linda, acaba explodindo em cachoeira, para se refazer morena, mulher e mel. Ela vem sentar perto de mim, na grama ainda molhada. Eu tento mais uma vez: — Karisme, eu não entendo você. Não vou mais tentar entender você. Seja lá como for, sei que não está mentindo. Está sofrendo. Nem entendo por que começou a chorar agora. Prefiro... Ah, eu não prefiro nada. Karisme, me desculpe, eu não quis... Olha, eu te amo. Eu amo tudo porque... porque... Olha, eu amo as estrelas, o universo, o planeta, só porque você está dentro deles. Só porque... Ela me pede um beijo.

Quando Karisme beija é como se as paralelas se encontrassem. Resgata as vésperas e vigílias de todas as dores. Resgata este coração pendente entre a incerteza e a solidão. E a solidão é um ferro em brasa que me apavora mais do que o medo de ser covarde perante a dor.
— Sofre, coração. Karisme é assim mesmo: agora, ama. Daqui a pouco, não ama. Depois de amanhã, vai amar. Amanhã vai me deixar balançando entre o amor e o medo. Quarta-feira vai sumir. Quinta, manda notícia. Sexta, ninguém sabe. Sábado reaparece vestida de esfinge. E domingo, desfalece em meus braços, me dando tudo e prometendo nada. E pedindo o mundo. E pedindo nada. Sofre, coração. As desventuras são tantas que as venturas — de tão poucas — não se aventuram a ventar para a banda de teu bojo. Sofre, coração.
— Por que você não fica, Karisme?
— Não sei. Não posso.

Quando Karisme desapareceu — e hoje está fazendo um ano — havia alguma coisa de doente no vento. Ela me deu um anel e não disse nada. Disse que queria me dar, que era meu, e não disse mais nada.
E hoje meu corpo é um archote que tremebalbucia, mas está andando, mas está ardendo. Karisme é um susto seco. Silencioso e eterno. Devora. Não se contenta em lamber: devora. Fiz um balanço de minhas esperanças e de minha ternura. Salpiquei de solidão a ponta de qualquer pensamento novo que nascia. E Karisme sempre me pega de surpresa. Karisme é a tinta que não sai, o número de que não se esquece, a dor indefinível, viva e inamordaçável.

E hoje meu coração é um vasto e empoeirado sótão mal iluminado onde sempre sopra o som de qualquer vento perdido. E ela está tão perto que posso cochichar e ela ouvir.

Eu sei que ela continua perto, porque aprendi a conviver com os milagres: converso com as grutas, tenho medo de um sábado, passeio em discos voadores, ouço narrativas de viagens dos peixes e dos pássaros, e me entendo muito bem com os espíritos dos rios, dos bosques e das montanhas. E eu estou muito feliz, porque eu sei que não mudou nada: Karisme está tão perto que posso cochichar e ela ouvir.
 
Varginha, fevereiro, 1972
Aeroporto – MadrugadaÍ


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