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Marcos Resende Histórias

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J.B. Desceu Aos Infernos

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E não subiu aos céus, de imediato. Mesmo porque, na verdade, nem sequer houvera descido ao inferno ou a qualquer lugar semelhante. Ou mesmo a lugar algum. Emergira da tumba com quem sobressurge de um mergulho. Abriu os olhos, temporariamente selados pelo intempestivo lacre da morte e, agora, o que tem pela frente, J.B. indubitavelmente ignora.

Faz um balanço em sua memória. Lembra-se dos dezoito degraus da escada que subiu aos pulos. Acredita, de forma um tanto imprecisa, haver atravessado o pequeno corredor ao qual davam as portas dos quartos, do banheiro e da copa. E, em circunstâncias normais, poderia até apostar que entrou no seu quarto cheio de flâmulas pelas paredes, e fechou a porta numa batida enérgica e seca. E deitou na cama e fechou os olhos.

Ninguém é eterno. J.B. sabe disso. Chega um dia em que se costuma morrer ― aprendera. Não passou pela sua cabeça vulgar que ele pudesse, porventura, ser a exceção privilegiada ao estabelecido. Ninguém é eterno ― pensou. E daí, qual a diferença que para ele existe agora, entre pensar nisso ou no carro do Doutor Antônio Carlos Pinhegas (teria que aprontá-lo até amanhã sem falta, na oficina ― lembrou-se).

Que diferença existe para ele, agora, entre rememorar uma letra de samba ou as surras que apanhou da mãe, irritada, porque ele sempre tivera a mania antipática de não fazer nunca uma coisa errada. Importa, a esta altura, coordenar quaisquer pensamentos que nunca colecionara antes, e que nem de perto suspertara de que neles alguém pudesse, alguma vez, pensar?

Espaço. Luz. Silêncio. E J.B. irremediavelmente lúcido. E, o comum J.B. que sempre jotabeliscou muito pouco das luzes e do mistério da vida. Ambição? Comuns. Amores? Convicções políticas? Filosofismo? Cosmovisão? J.B. os tem, como não? No vasto pasto do seu jotabemaventurado cérebro rumina as opiniões ditadas pelo senso comum. Policiadas pela censura e contra-senso a serviço de incomuns interessados. Não só as acata, como ainda as engole sem mastigar. Como quem ingere capim e não discute. Não supõe que haja outra alternativa além da que adota, segue e não vacila. Sempre foi assim e ― se assim o fora para o seu avô, seu pai, seu bisavô ― assim será também para o possível filho que haja cometido. Jotabestamente.

Habituado aos carros e escarros dos impacientes fregueses da oficina, ele acostumara-se organicamente, a não ultrapassar os limites prescritos pela condição que o sistema lhe impusera. Seu avô, mecânico. Seu pai, mecânico. J.B., mecânico. Não há por que fugir. E por que não dentista, eletricista, artista, padre, marinheiro? Não. Será mecânico. Está no sangue. Sem megalomanias. Sem Meca alêm do cânico cano de descarga e do motor do carro do Doutor Pinhegas, que, querendo ou não, terá que entregar amanhã. Impreterivelmente.

J.B. e o espaço branquicela e vazio. Sem norte, sem sul, sem qualquer referência que determine o rumo a seguir. Tanto faz vir. Ou ir. Ou rir. Pensar ou não pensar? Tanto fez ou faz e tanto se fará. O que faço aqui? O que é que estou fazendo aqui, que nem aqui me atrevo a intitular de aqui? O que eu perdi aqui? Que horas são agora? O que me aconteceu? Onde é que vim parar? É muito cedo? É tarde? É de manhã? É noite? Eu devo estar sonhando e agora mesmo acordo. É claro, estou sonhando e de repente passa e voltarei ao quarto da pensão dos ratos. Na pensão, um rato é o que eu tenciono ser e é o que até hoje fui. É o que ambiciono sempiternamente ser e, sem tirar nem pôr, serei até morrer.

Morrer? Estranho. Será que a morte é isto? É o "onde estou" pedindo explicação plausível? Mas, que sono eu sinto! Se não tivesse absoluta certeza de que estou dormindo em minha cama, em meu quarto, sob as flâmulas e sobre o canário bela, lá embaixo, enchendo o saco do verão e de janeiro... Se eu não estivesse certo de que ― agora mesmo ― eu acordo de acordo... Se eu não soubesse que só estou sonhando... Que vontade de fumar que vontade de fumar que vontade de fumar que vontade de acordar para depois fumar. Que sono!

Tenho que descobrir até as nove e meia da manhã, amanhã, o que é que está acontecendo com o motor do carro do Doutor Pinhegas. Fiz o que sabia e o que eu não conhecia. Revirei. Mexi. Fosei. Lubrifiquei. Benzi. Ah, se até as nove e meia eu não o consertar!... Deixe-me ver... O Doutor ficará pasmado, a princípio. Avermelhará, em seguida. É cólera. E daí pra frente, gritos, ameaças, recriminações e adjetivos. Provavelmente, promotor, juiz, condenação à morte e execução em público a servir de exemplo a todos os mecânicos pretensiosos.

Já me vejo andando. Compassadamente. Como Tiradentes. Para o cadafalso. Falseando o passo, apanharei na cara. E cara a cara à forca, então, será me confessar ao padre adrede preparado que preparará meus arrependimentos. Será na praça, é claro. Onde mais poderia ser? Serei conduzido pelas ruas públicas ao lugar da forca para que nela morra morte natural, para sempre, e que depois de morto me seja cortada a cabeça, onde, em o lugar mais alto, dela será pregado em um poste alto. Até que o tempo a consuma. E o meu quarto será arrasado e salgado para que nunca mais no chão se edifique. Não faltarão as cores, cores, cores, cores. Cores dos vestidos. Não faltarão as mulheres de nervos de aço. Minha mãe, chicote em punho, molhada de gozo, tesuda. Não faltarão tambores, nem mormaço, nem clarins. E nem os olhos duros por detrás dos muros pré-gozando o fim. O meu fim.

Já virei o motor de cabeça para baixo. Que vontade de fumar. Será que tomei banho? Tomei-nãotomei-tomei. É claro, não tomei. Cheguei, deitei, dormi. De macacão e tudo. Estou de macacão, nem tinha reparado. As mesmas velhas manchas de óleo e graxa e suor. Trabalho. Acordar, acordar, acordar, acordar, acordar! Como eu desejaria acordar agora. Que sono comprido, meu Deus! É bem verdade que já acordei de sonos que julgara eternos. Nunca me ocorreu, contudo, ficar tão consciente e lúcido como estou agora. Sem um pesadelo. Sem um sonho. Sem um remorso. Sem nada. Nesta nudez insípida, vestida de macacão sujo, e de braços cruzados. Nunca me deitara antes sem tomar um banho... Sem vestir pijama... Sem jantar, sem nada...

Luz. De onde vem a luz de não enxergo o sol, nem céu, nem lua, nuvem, nem estrela? Onde foi parar a paisagem? O quarto? Espaço. Só espaço e luz. Que luz é esta luz? É fosca, intensa, pálida. Dizer que está escuro é o mesmo que mentir. Mas, positivamente, não me convence este claro sem cores, sem clarões, calor. Acho que ― deixe-me ver ― posso dizer sem mentir que está escuro, mesmo. Não, não. Se não houvesse o claro, o branco sumiria. E, o que estou vendo, é branco.

Não escuto o canto do canário belga e o zoejar das ruas. Por que? Não escuto nada. Nem os sons difusos que escapam da cidade e interpenetram o quarto através das venezianas sempre abertas para entrar ar. Onde estão os ruídos, meu Deus, onde estão os barulhos, onde estão os cheiros? Vontade de aspirar o aroma das panelas. De fumar. Fumar. E de acordar de novo.

Espaço. Luz. Silêncio. Que horas são? Que sono!... Pelos meus cálculos, ainda me sobra tempo suficiente para tomar banho, fazer a barba, jantar, ir ao cinema. E dormir mais cedo e levantar bem cedo para ver se eu chego meia hora antes à oficina e ao motor do carro do Doutor Pinhegas. Ah, se não ficar pronto até as nove e meia! Eu nem pretendo ver a cara desgraçada que ele vai fazer.

Irá ― deixe-me ver ― se transdesfigurar e poderá virar a minha mãe querida quando me batia e sobre mim trepava de chicote e esporas. Era como se sentisse sexualmente um mágico deleite em me seviciar. Em arrancar do pé com lentidão erótica os chinelos lépidos. E me sovar. Surrar. Além das dimensões das minhas magras culpas. Oh, o delírio! O delírio dos olhos nos seus olhinhos brilhantes! Oh, o orgasmo que meu pai não dava! Ah, o fogo que meu pai negava, descoberto ― oh, graças! na pancadaria. Não lhe impressionavam sangue, sofrimento e súplicas. Não se comovia ao ver meu meu rosto se torcer em contorções de dor. ― "Oh, o doce açoite, o cinturão elétrico, o vergão vermelho desenhado a couro no teu corpo nu. E o chibatear divino, divinal delícia!" ― E o incansável braço manejando o látego. E o suor materno lhe lavando o rosto. Guturais gritinhos histéricos, eventualmente, fogem de sua garganta, em meio à cachoeira crescente de ameaças. Ameaça de me aplicar, no futuro, as mais inimagináveis torturas, cada qual mais cruenta e inacreditável. Oh, o prodígio! Suas frágeis mãozinhas e sua saúde débil, da qual tanto se queixa, realizando assombros de resistência física. Se acaso, eu caio ao chão... Oh. que ensejo lúbrico. Ensejo de pisar, pisotear, pisar e repisar em mim. Pisopisar com a sola de seus pés desnudos. De seus pés que pedem ritmo e que lepe-lepe, pés que pesam. Pisam. Orgia, enfumaçada orgia. Palavras borbotando loucas de seus lábios rubros. O ápice aproxima-se. Baba. Bate. Baba. Lept. Ritmo. Baba bá-bá-bá. E bate, bole, brinca. E o som. Respiraçao de porco javali resfolegar rugindo. Pá. Pancada. Grita, morde e goza. ― "Oh, prazer, prazer! Volúpia! Meu filhinho!". 

Espaço. Luz. E o tempo. Posso me mover. Andar. Mexer os braços. Mas, andar pra onde? Não enxergo nada além da branquidão do espaço esbranquiçado. Que horas são? Que sono! O que me aconteceu? Meu Deus, que horas são? Que horas? Espaço. Só espaço. E esta luz inútil alumiando o nada. Nada atrás de mim. Nada à minha frente. À direita, nada, e nada à minha esquerda. E só o espaço em branco. Ausência de uma árvore. Seta. Semáforo. De um cachorro que seja, para que eu possa estabelecer qualquer ponto de referência. 

J.B. não sabe. J.B. no nada. J.B. no claro que parece escuro. J.B. perdido num espaço. Sem cachorrro. J.B. nem morto. J.B. nem vivo. Não está dormindo. Não está sonhando. Está com muito sono e irremediavelmente lúcido e com vontade de fumar.

(de uma ideia de Oreste Maurizio Regispani)

Varginha, 1971


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