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Marcos Resende Histórias

Marcos Resende Histórias

Helena dos Espelhos e das Frutas

Adan Buzo.jpgÍndice Histórias   Índice Geral

01.
Ainda há pouco estava triste: por causa das nuvens. Não que o céu estivesse carregado para chover, desse tipo de nuvem ela até gostava. Mas da nuvem branca, esfiapada, que parecia coisas. Essa a deixava procurando um gosto perdido de tarde e de sol que há muitos anos existiu na casa de sua avó, com jasmins e magnólias no alpendre, rosas e violetas no jardim. Na horta, além de velhos troncos apodrecidos cobertos de musgo, havia uma pequena cascata e todas as frutas: jabuticaba, manga, goiaba, laranja, uva, mexerica, maracujá, abacate...


Todos esses cheiros, flores e lembranças fundiam-se numa saudade só, numa tristeza única, numa dor sem revolta: "Coisas do tempo" — pensou. Olha-se ao espelho; quase lágrimas nuns olhos onde se desenhavam as primeiras rugas. — "O tempo perfura profundos sulcos nas pessoas — murmurou. O tempo arrebenta tudo: alpendres, árvores, casas..."

Melhor descascar batatas e cebolas, esquentar o feijão do almoço, temperar o bife (João não gosta de alho), porque a noite veio; na porta, a buzina do caminhão que mal podia rodar, de tanta carga, e o carinho pontual e cheirando a suor, de João, um beijo bigodudo, voz aveludada e mansa. Ela também estava cheirando a suor, precisando de banho. Deixara o chuveiro ligado há uns quinze minutos e mexe aqui, mexe ali, a água esperando.

Mas, e o cansaço de João? a cachaça? os chinelos? Ela se ajoelha, descalça-lhe os sapatos, tira-lhe as meias e mete-lhe os chinelos velhos, gastos. A água corre. Agora sim, despe-se do largo vestido, calcinha, soutien, sandálias. Põe-se debaixo do jato forte, despencando-lhe solidamente nas costas, respingando-lhe nos volumosos e maciços peitos, escorrendo-lhe pelas nádegas agigantadas. A espuma desliza da cabeça ensaboada ao belo rosto negro. A moça a afasta dos olhos, movimento brusco. A espuma se desmancha. A água morna entorpece a tensão, dopa a angústia e Helena se dobra à fadiga e à preguiça, senta-se na banheira e deixa que o banho lhe descanse a vida.

A toalha desfraldada bebe o cansaço, pingo por pingo. O belo e bamboleante corpo absorve a essência de cedro. Perfume cálido, o vapor do banho escapa pelas frestas das persianas, fundindo-se na copa ao aroma do bife com bastante cebola, posto à mesa, e coberto com um guardanapo de papel com o escudo do Corinthians.

João pega o pão e parte-o em dois pedaços: um para comer puro, outro para passar no molhinho da carne. Mastiga. Helena não sabe explicar, mas quando João mastiga mexe com todas as fibras dos seus apetites de mulher e é um dos momentos mais nítidos em que o sente "seu homem", comendo a "comida dela"; dela, a fêmea, mulher de forno e fogão, fogo e paixão, tempero e carência, com muita carne macia e perfumada para ser devorada por ele num alucinante almoço, acafajestada fome, com o ímpeto de um garanhão a óleo diesel, dilacerando a estrada arreganhada e nua.

Mas, agora é noite. Não ficou barulho. Não sobrou remorso, dúvida nem perigo. O que era paz, em paz permaneceu. O amor, pouso delicado de ternura, estendeu-se num lençol limpo e branco, e João tomou Helena, escultura negra, cordilheira e lua. Tudo no quarto, a começar pela entrada e saída de ar e a terminar pelo pêndulo do relógio, deslizam adocicadamente, em espiral, cobrindo o silêncio e a penumbra com uma camada de eternidade.João, a princípio, navega desarvorado em vacilante travessia por declives perigosos, ardilosas veredas sem saída. Mas, o que é isso, seu moço? Cadê mestre João, o dos caminhos abertos, o do sorriso de cigano? (Quando ele vem, já de longe dá para perceber: João chegou. Quando se fala dele, fala-se com firmeza: aquele é amigo. Ele não faz isso ou aquilo para ser assim: um homem se conhece, como se conhecem os metais e as casimiras, e Helena sabe que todas as mulheres sonham ansiosamente com homens estradeiros e meninos, como o dela.)

Do que mais ela precisa? Sua horta está cheia de frutas, seu corpo está cheio de João. A ele se entrega, se abandona; nele descansa e confia, e sonha com pomares e estrelas.

02.
 
Nasce a manhã, leito de nuvem, leite no fogo, água a ferver, pão na assadeira. E o corpo de Helena, fragrância de cedro, flutua, levita, debaixo de João. O relógio bate cinco horas. Um perfume de café moído na hora derruba o odor da noite que ainda se desprende dos lençóis.

João é suave como um cisne sobre o corpo de Helena — engata a primeira. Ronca o motor. Óleo diesel empesteia a aurora. Vagarosamente se arrasta pela rua. Acena a ela, ainda perto. Ela corre e beija-lhe a boca com bigode. João na cama pousa como paina, gordo e grande como é. O vento da manhã leva para longe um cheiro de amor ainda morno. O caminhão faz uma manobra demorada. João desce pela última vez para checar água, pneus, carga, segurança. Sobe, testa freios. Murmura a Helena palavras sobre calendários, idas e voltas, um passeio de barco, um novo vestido e — quem sabe? aumento, festa, muita cerveja, feijoada (sem alho, bastante lingüiça, paio e toucinho – de pé de porco não faz questão). Quanto ao mais, não jurava nem pedia nada e, ao terceiro ronco do motor as nuvens brancas trançaram-se e escureceram-se; a atmosfera parecia dinamite prestes a explodir, perdurando essa impressão pelo dia inteiro.

03.

A noite novamente veio, mas não veio a chuva. Helena, lânguida e sonhadora acaricia suas carnes numerosas, suas coxas gordas e roliças. Chora uma lágrima delicada, que enxuga num pano de prato. Liga a televisão: ainda está muito cedo para a novela das seis, dá tempo de arrumar a cozinha, arear a panela de feijão. Põe tanto empenho nisso que em pouco tempo o fundo de metal fica tão polido quanto um espelho; minutos além, cintila como um sol, e depois, muito depois, como ela insistisse em lustrá-lo usando sucessivamente camadas de pasta para metal e aplicando-as com flanela, feltro e veludo, o objeto estilhaça-se, sem se partir, em pequeninos espelhos e estrelas, diminutos sóis reflexivos.Cozinheiramente, com gestos lentos e comuns, agindo como se nada houvesse acontecido e fosse isso mesmo o que ela esperava da panela, cutucou as brasas do fogão, atiçando-as; pendurou as cascas de laranja (quando secas são ótimas para acender o fogo), lavou a pia, enxugou os talheres, deu leite para o gato, pôs água na gaiola dos passarinhos e viu que a novela já estava começando, mas desligou o botão: hoje eu não posso.

Segurando a panela com a mão esquerda como se fosse espelho de cabo e ela se preparasse para depilar a sobrancelha, vai-se deixando embalar pela própria esperança e tudo o que ela quer saber o espelho responde. Consulta-o calmamente, sem emoções nem surpresas, porque, para experimentá-lo, só pergunta o que já sabe e lhe dá prazer.

Quando cria coragem e começa a fazer sondagens mais sérias sobre o desconhecido, os quadradinhos fragmentados da panela, como fotografias animadas, passam a revelar cenas simultâneas e independentes. Helena sente a visão embaralhada e um pouco de enjôo, mas o que vê é tão agradável, tranquilizador e ameno que ela, um tanto embriagada pelos bons presságios, se deixa seduzir pelo mistério e perde o medo de devassar o futuro. Morreria velha, compraria um carro, venderia doces para fora (teria tanto êxito que acabaria abrindo uma lojinha), adotaria uma filha — uma criança loura que viveria no mar e estudaria estrelas; plantaria árvores novas no pomar, flores novas no jardim, nos vasos, nas jardineiras. As galinhas neste ano chocariam tantos ovos, nasceriam tantos pintinhos que o dinheiro da venda daria para trocar as telas do galinheiro e fazer um muro novo no fundão da horta. Sua escola de samba não ganharia desta vez, nem no ano que vem, mas nem por isso perderia as encomendas de costura. O "Calendas" (Esporte Clube de Calendas — único time por que torcia, além da seleção, é claro) seria bicampeão da cidade e passaria à primeira divisão, disputando o campeonato com os times da capital. Faria seu santo antes das chuvas. Cairiam sem parar neste ano, mas felizmente gearia pouco e se colheria muito: muito café, muito milho, muito feijão, muito arroz e verdura. Ano de boa engorda e pouca doença para a criação, principalmente o gado.
 
A João, príncipe negro dos caminhos, ela o via em seu trono de rei, na ponte de comando, volante na mão, seguro como um jequitibá, olho de fogo dissecando a estrada noturna. Dos perigos nas viagens nunca teria nada a temer. Deveria se cuidar com um tal Galvão, um motorista novato, de Bocaxim, que andava metido em contrabando de café e estava de olho em João para o serviço. Muito jeitoso, fala de doutor, cheio de agradecimentos, gentilezas, sorrisos: "esta é minha, deixa que eu pago", nunca deixava ninguém pagar; quando não estavam olhando, ia até o caixa e acertava tudo: altas rodadas de cachaça, cerveja, tira-gosto de pernil...

Os colegas, motoristas de caminhão, gente simples, companheira, foram facilmente conquistados pelo sujeito. Era uma festa quando ele chegava ao boteco à beira da estrada, ponto de encontro e refeições, papo e cachaça, pagando tudo e contando piada. Piada! Galvão era a piada. Vestia, corporificava, suava, sofria com ela. Até rebentar! Aí, o que arrebentava era o mundo! — e enquanto todos riam, Galvão mandava outra.
 
No quadrinho seguinte, Helena viu João chegar ao botequim. Notou a gentileza em excesso de Galvão, enchendo copos, puxando cadeiras. Nem precisou de espelho, enxergou todo o perigo, correu ao quarto de costura, trouxe pano, linha e agulha. O mais rápido que podia, com muito medo de que não desse tempo, ia costurando e costurando, não desgrudando o olho do espelho.Quando o boneco ficou pronto (parecidíssimo com Galvão), este, há muito tempo já tinha dado um jeitinho de levar João para um canto, conversa ferrada. Já estava falando em dinheiro: 50% para cada um, uma fortuna por viagem! 25% antes, 25 depois. João bebia, bebia.

04.

Em cera, Helena modelou um revólver e um facão. Recitava orações perigosíssimas, reza brava de meter medo em feiticeiro calejado, de cabeça branca e muito saber, acostumado ao pior. O que ela estava esperando, aconteceu. João pousou vagarosamente seu copo na mesa, deu um chute na cadeira que estava na frente e arrancou a faca.(Helena reza a faca de cera e envolve sua ponta em algodão, para que não mate.) De um pulo, parte para cima de Galvão, que, também homem de briga, estando desarmado de faca, puxa o revólver e atira. A bala (coisa de Helena) explode sem sair do cano. João, com um chute no antebraço do sacana manda-lhe a arma longe, e bufando de raiva acerta-lhe uma porrada na boca do estômago. Daí começa uma enfiada de murros, cabeçadas, pontapés; que só terminam quando a raiva de João vai serenando.

Ninguém no bar quis interferir, de forma que ele pôde bater à vontade. Enquanto João dava pancada, Helena protegia as partes mais frágeis do boneco (olhos, clavícula, sexo, costelas, coração, vesícula, bacia, pescoço) com pequenas cruzes de carvão-de-exu: que seu homem batesse bastante nas outras partes, mas que não fosse parar na cadeia por causa de um filho-da-puta daqueles.
O assunto não mereceu nem falação, nem ação: todo mundo já sabia das manobras do pilantra — o que não se sabe nas estradas? Todo mundo de acordo quanto à sua ordinarice. João pediu esparadrapo e iodo no bar. Entregou pessoalmente a Galvão e disse: — Faz os curativos e desaparece da estrada e do mundo. Não te entrego à polícia porque não gosto de polícia. Mas, te guarda se eu te vejo outra vez!

05.

Registrado nos espelhinhos de João, podia-se ainda ver: algumas gripes, outras tantas ressacas, um tio que vai pedir dinheiro emprestado (hábito antigo) e não vai pagar; em compensação ensinará a João o que ele sempre teve loucura para aprender: clarineta, e João se sairá tão bem que tocará na banda. Aposentadoria no tempo certo, amigos verdadeiros, saúde de ferro, cabeça branca, total lucidez e agilidade nos membros. Lucro em compra e venda de imóveis: terrenos e casas de aluguel. Lucro em venda de legumes e frutas. Vitórias brilhantes no joguinho de damas todas as tardes, na farmácia do Fabiano. Sua escola de samba (rival da de Helena) venceria neste e no ano que vem. Seu time de futebol enquanto ele vivesse não ganharia o campeonato.

Agora, ela ia dormir, não queria ver mais nada, não. De si, já sabia tudo. De João, soube a tempo e a hora de ajudar, graças a Deus. O futuro seria tão manso... De espelho, não carecia mais, não. Do resto ela sabia: não haveria de conhecer seu homem, então? Violão, cachaça, raparigas. Mas, não se amofinava, entendia. Cachaça, ele bebia bastante, mas do jeito bom: sem cambalear, sem enrolar a língua; contava mentiras aceitáveis, não perdia o bom humor... E à noite, ele vinha e se entregava apaixonado, desprotegido. Violão, ela adorava. Voz de homem, enchia a casa — músicas de Noel Rosa, de Dorival Caymmi. As putas? Não se importava, não. Homem precisa variar, senão enferruja. De amor ela andava tão rica, bem amada, bem comida. As putas, ele não amava, não. Gostava delas, era amigo: de vez em quando, passava no açougue, comprava uma quantidade enorme de filé, ou frango, ou lombo de porco, levava para a casa da Gaby e mandava assar no espeto, no forno, fazer bifes. Quando não era isso, era peixe. Nesses dias, convidava os amigos: Tuí, Carlinhos, Humberto, Otacílio, Moreira, Jean, Sílvio Brito, Célio; mandava "fechar a casa" e ficavam bebendo, comendo e cantando até o último dormir. Para Helena, tudo bem. Uma vez, faz muito tempo, sugerira:
— Traz a turma para casa, amor.
—Tocar, cantar, comer e beber com os amigos só tem graça num lugar, meu bem: casa de rapariga. O que chega mais perto é botequim!... Depois destas "lavagens de alma na casa da Gaby", como ele dizia, dava a Helena durante muitos dias, a impressão de que haviam retornado aos primeiros tempos de casamento: arte e magia no tato, fogo e fartura no amor.

06.

No dia seguinte, a panela voltou bem cedo para o fogão. João chegara cansado e queria dormir até o sono acabar. "Quando ele acordar, vou pedir pra consertar a armação das uvas, apodrecida pelo tempo" — pensou Helena. Havia muito o que se fazer na horta e na vida. O sol de setembro brilhava com energia branda. O ar puro da cidadezinha, o silêncio das ruas com tão poucos automóveis, o perfume das flores e das frutas enchiam Helena de alegria. A vida era doce e calma como maracujá. As galinhas já haviam enchido de ovos os ninhos, era só recolher. Muita jabuticaba, também, para apanhar, senão vai-se perder, de tão madura! Logo, logo, João se levantaria, contaria a briga, tomaria banho, daria uma volta pela cidade, beberia uma pinguinha, viria almoçar. Depois, arrumaria a horta, apanharia fruta, e sei lá o que mais... Podia ir à beira do rio pescar, que não viajava hoje; jogar dama na farmácia, sinuquinha no boteco, dominó com o padre Anthero. Fazer o que der na telha. Podia tomar Helena, levar Helena ao comércio, comprar para ela um vestido, uma sandália, um sapato. Levá-la a andar a pé pela estrada, pelo mato, andar de barco no rio...

07.

Muitos anos depois, nasceu uma menina loura entre as macieiras e as uvas. Levada por seus próprios pés, amava as estrelas e ficava o dia inteiro na areia, à beira-mar. João tocava clarineta na "Lyra de Calendas", prosperava e vencia na dama e no amor. Helena ainda há pouco estava triste, por causa das nuvens. De longe em longe ficava assim, perdida num tempo de nevoeiro, num passado amarelecido em que se lembrava de um alpendre com jasmins e magnólias, rosas e violetas no jardim. Nessas horas, ficava tão triste a ponto de não aguentar; triste como valsa, violino; triste como um domingo. Tão triste, que ninguém chegava perto; nem a filha (que se chamava Helena), nem o cachorro tão agarrado a ela. Até os espelhos se esquivavam, recusavam-se a refletir tanta amargura: Helena, há alguns anos, quisera ver a imagem de sua dor no espelhinho do banheiro; o espelho a repeliu, não devolveu seu reflexo. Em sua face de gelo reproduzia tudo em volta, menos o rosto de Helena. E não lhe deu confiança enquanto ela não sorriu.
De repente, João aparece como um sonho, envolve-a como brisa. Seu amor derrama-se sobre ela com a doçura da tarde que cai. Como água de chuva miúda cobrindo pétalas e folhas, insinua-se nela, esparrama-se nela como o sol que se alastra no horizonte, quando a noite vem. Ela, então, olha para o jardim, para o pomar e vê as espigas de milho amarelinhas (quase na hora de colher), o canteiro de gerânios, as petulantes dálias, as abóboras no chão estalando de maduras; e lá no fundão perto do muro, as roseiras, as orquídeas (sempre tão enjoadinhas...), os cravos, as madressilvas. A vida circulava grandiosa, exuberante e livre nos canteiros e nas árvores, nos ares e sobre a terra umedecida de chuva, debaixo do chão, nas pocinhas d'água, nos buraquinhos dos troncos e do solo, sob as pedras e gravetos. A horta, uma galáxia superpovoada de vidinhas irrequietas e coradas. As abelhas e os passarinhos não param um minuto. É o vôo, o canto, a colmeia, o mel, o pólen, os filhotes, a companheira, é o ninho. É a festa da fecundidade, o sol quente, o dia claro, o cheiro da natureza, o cheiro de chuva velha. É a força imensa da vida se opondo aos males dos homens, tão pequenos, tão solúveis que quase não existem.
No galinheiro, o ruído de minúsculos biquinhos arranhando a casca de ovos, avisa Helena que uma ninhada de bebês vai chegar daqui a pouco.
— Que bom! Os pintinhos estão quase nascendo. É melhor eu moer milho e deixar canjiquinha perto da bacia.

Olha para João: olhos banhados de ternura (e a ternura é tanta que Helena fica arrepiada e chora). Olha para João: manso como a noite, corpo flexível de canavial, coração sem peso, mãos que deslizam macias, sem pressa, como carro de boi. Olha para João: calmo como o mormaço da tarde, carapinha de veludo, voz de ribeirão.
Aí as comportas da emoção se fecham, pequenos receios se dissipam imperceptivelmente como os soluços, e Helena, ainda com lágrimas nos olhos, aperta, aperta muito o corpo musculoso do seu homem e se abre inteira como terra fofa, e sorri inteira, porque acaba de tomar posse definitiva de sua felicidade, tanta e tão perfeita que dá tontura só de pensar. E se despe para João, príncipe negro dos caminhos, que a conduz, suave como um cisne, pelas estradas da noite. O espelho da penteadeira espia impassível pelas frestas da penumbra. No quarto ao lado, Helena do Mar, a menina, dorme de janela aberta – seu corpo cheio de estrelas. Na cama, o poderoso amor de Helena e João (que jamais frutificara em filhos de sua carne) desprende-se de seus corpos, irradia-se em ondas espirais, atravessa as paredes da casa, é captado pela sensibilidade das flores, dos legumes e das frutas, penetra em suas raízes, e como seiva incrivelmente rica, faz com que eles se tornem belos, sadios e graúdos como nunca se vira antes na face da terra. O extraordinário fluido de fertilidade é absorvido por todas as criaturas vivas, insetos, animais, pessoas; primeiro, pelos que estão mais próximos, depois por toda a cidade, até se perder já sem força nos pastos das últimas fazendas.
 
São Paulo, 24 de julho de 1976


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