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Marcos Resende Histórias

Marcos Resende Histórias

Calendas, Nome de Cidade

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Moro há três semanas no melhor hotel, assim considerado pela opinião geral (do dono e da mulher), não partilhada pela mulher e o dono do outro hotel que existe. Mas, não tenho por que me queixar. Sou um homem simples, que prefere a paz de um modesto lar, ao luxo e à ostentação do mundo. Relativamente moço, imensamente livre, só me casarei se a mulher — que, até agora não conheci — preencher todos os modelos que preestabeleci, com o auxílio da filosofia de Platão e da matemática pura, ciência que fascina e recreia minhas horas de lazer. Curioso: é a primeira vez que digo "minhas horas de lazer"...

A tal mulher terá que ser belissimamente linda, porque sou um artista, um sacerdote da estética, e poucos eu conheço com sensibilidade tão desenvolvida quanto a que possuo: capaz de penetrar no recôndito, no âmago, na essência da beleza das coisas.

A comida deste hotel é um atentado contra a estética! Louça de mau gosto, talheres de metal plebeu, toalhas lamentáveis! E quando se vê a comida nas bandejas, o impacto provocado pela ausência absoluta de beleza é tanto que se perde a fome. Bifes feiíssimos, arroz desbotado, gordura minando das batatas fritas, ora murchas, ora estorricadas. Se não repararmos, o apetite se esquece. O que os olhos não vêem... Entretanto, mal o paladar se dá conta do que terá que aceitar, protesta com náuseas sucessivas — que eu posso traduzir por acusações violentíssimas à consciência profissional de quem cozinhou aquela infâmia, tempero abjeto, ingredientes nocivos e referências análogas.

Findo o veemente protesto do meu espírito ante o triste espetáculo culinário oferecido aos meus sentidos: visão e paladar (sem me referir ao olfato que aderiu prontamente à causa comum), serenam-se os ânimos porque — atenção! — entra em cena meu ascetismo bovino, meu conformismo oriental: uma facilidade nata de adaptação ao meio ambiente e nos altos e baixos circunstanciais a que estou sujeito como ser humano. Eficientemente, os pratos se esvaziam; mudam de endereço os comestíveis grosseiros, transmigram-se para o estômago que, embora de mau grado, lhes concede asilo. Apalpo a barriga cheia, satisfeito, feliz.

É verdade que o colchão é duro. Poucos cobertores, não escoram o frio. O barulho da rua dificulta o sono. Todos os hóspedes ao entrar e sair têm obrigatoriamente que passar pela minha porta e pisar numa tábua solta que por acaso vai dar bem embaixo da cama. Os sapatos no assoalho provocam um ruído tal que, ampliado pelas condições acústicas do amplo corredor soam aos meus ouvidos como martelo na bigorna. Raro o dia em que ninguém se embriaga; há sempre um ébrio entrando aos trancos e tropeções até acordar o porteiro que, quase sempre bêbado também, faz valer sua autoridade trocando insultos e palavrões aos berros com o transgressor do silêncio. O dono e a dona do hotel engalfinham-se pelos mínimos motivos em conflitos corporais. Sem contar os filhotes de cachorros e gatos da vizinhança, que escolhem a minha janela para os diálogos noturnos.

De manhã, às oito horas, há ensaio da fanfarra no colégio ao lado. A banda existe há um mês, apenas, de forma que os meninos estão começando a aprender a tocar os tarois, tambores, surdos, trombetas, trompas, tubas, clarins...

Pois nada disso me afeta o equilíbrio emocional. Impassível permaneço. Me concentro e duro com o que der e vier. Meu controle é perfeito. Não sou um super-humano. Ioga, não pratiquei. Não me esforcei para nada. Nasci assim, nada mais. Confesso que as pulgas quando eram muitas de vez em quando chegaram a me irritar um pouco. Como eu reclamei e ninguém tomou providência, acabei me acostumando, também.

Nas três semanas em que moro em Calendas tenho me dedicado à sociologia e à psicologia, estudadas por intermédio da observação e análise. Pretendo escrever um livro — o primeiro, aliás — e escolhi Calendas. Aleatoriamente. Tanto faz. As cidades se parecem profundamente umas com as outras. Os apetites humanos, idem, e o mesmo ocorre com as necessidades, inclusive a minha de, daqui a 15 minutos tomar o primeiro ônibus para a capital. Nada me prende mais a Calendas. Dissequei a vida deste pessoal sem dó nem piedade. Material, eu tenho para três volumes. Ou mais.

O que eu vi aqui, já nasci sabendo. Calendas confirmou e nomeou os bois. Ofereceu cobaias que reafirmaram a incrível semelhança entre um homem e outro.

Quinze para as quatro. Eu abro esta janela e espero. Não estou vendo, mas sei que dentro do bar da esquina há um homem tomando café. É um alto funcionário. Daqui a dois minutos vai sair. Saiu — eu não disse? No fundo, um bom sujeito, mas a hipocrisia e a vaidade o derrotaram: impediram-no de fazer uma carreira muitíssimo mais brilhante. Aquela pose toda é artificial. Senta-se, às missas, aonde seja visto, e não contente com isso sobrepõe a todas sua voz de barítono, nas orações conjuntas. É leão nas polêmicas. Pavão, nos coqueteis,. Assume quando quer a pele da raposa, aliada à manha dos felinos. Inteligente e instruído, não se muda para uma capital para evitar que o brilho de centenas de astros da metrópole ofusquem o seu, que aqui é solitário e único, como um diamante num anel. Chegará em casa daqui a sete minutos, abrirá a porta com a chave que tem no bolso da calça, irá ao banheiro, lavará meticulosamente os dedos e, finalmente, pendurará o paletó e a pose, até amanhã, quando começará tudo de novo. Ah, a propósito: este fulano é o juiz de direito e seu nome é Alberto Lopes Medina, Dr. Medina.

O prefeito Dr. José Fulgêncio da Costa é um matusalém amnésico. Sua memória se chama Maria Teresa. É a secretária. Não faz nada sem ela. De vez em quando, se esquece de que a secretária existe e vê-se em mato sem cachorro, até receber socorro, como, por exemplo, ela, espontaneamente, aparecer e lhe perguntar se deseja alguma coisa, “estranho o senhor não ter me chamado, ainda, hoje”.

Minhas malas estão prontas. Pago o hotel, saio, atravesso a rua rumo à estação rodoviária, que fica a três quarteirões. Passo rente à igreja, à casa paroquial. O vigário aparece à porta da sacristia para atender duas beatas.O vigário é milagroso. Cativa homens e mulheres. Insinua-se por entre as famílias (ricas) e consegue a presença quase maciça das pessoas (ricas) na igreja. Muitas ovelhas (ricas) que andavam há um bom tempo afastadas do rebanho, voltam graças a ele. Um bom papo, belo tipo de homem, é uma pessoa inteligentíssima. Seus olhos possuem brilho carismático. Seu livro de cabeceira — “O Príncipe” de Maquiavel — é enriquecido por comentários de Napoleão Bonaparte, em notas de rodapé. Todos os anos troca o carro. Anda muito bem vestido.

Bancários, comerciantes, profissionais liberais, funcionários e operários também moram na cidade. Acordam, trabalham, comem, bebem, procriam, telenoveleam e dormem.

O cinema é sinônimo de diversão obrigatória a todos os que se prezam. É de bom tom frequenta-lo aos domingos, na sessão noturna das oito e meia, e de mau tom na sessão das seis e vinte. Há o cinema dos brancos e o cinema dos pretos — ou não seria melhor dizer: há o cinema dos ricos e o cinema dos pobres? Tanto faz. A pessoa, em Calendas, muda de cor conforme a posição social alcançada. Preto rico é branco. Branco pobre, preto. Na rua de cima passeiam os brancos, há o citado cinema dos brancos, o clube dos brancos, os bares dos brancos. Na de baixo, a mesma coisa para os pretos e brancos pobres.

Não importa qual seja a xaropada impingida: aos domingos, como disse, todos vão ao cinema. Saem com ar de triunfo total! Homens, cara de boi. Mulheres, olhar de vaca. Os rapazes e as mocinhas de boa família vão para as boates tomar chope ou cuba-libre (moderadamente) e dançar (separados) até uma determinada hora, porque os papais e as mamães não deixam que as menininhas — de uma vez por todas — durmam em paz com os menininhos, e supõe que os ponteiros do relógio influam decisivamente no comportamento sexual das filhas. Se estas ficarem mais meia hora — mais uma hora, digamos — fora de casa, além da hora marcada, é sinal indiscutível de que acabam de ser defloradas pelos namoradinhos e é um deus-nos-acuda, a terra treme, o mundo vem abaixo. As que realmente o são perdem o sossego para sempre: ou se casam obrigadas, ou são levadas a um cirurgião da capital para uma sigilosa restauração.

Aos domingos, feriados, dias santos e sábados, o movimento nas ruas é infernal. Uma multidão desce enquanto a outra sobe. Em seguida, a que desceu, sobe e a que subiu, desce. Todos procuram. Os que sabem o que procuram, não acham. Os que não sabem, se por acaso acharem não resolve nada. E os que sequer sabiam que estavam procurando?

Por ocasião de alguma festividade cívica ou religiosa, não fica viva alma em casa. Saem às ruas, sorridentes, enquanto esperam a festa. A festa nunca aparece. Bem que procuram desesperadamente por ela. Entram na igreja. Dentro da igreja, não está. Fora da igreja há de tudo: gente vendendo vela, churrasquinho, pipoca, quentão, bolas de hidrogênio, cataventos, pastéis — menos a festa. Voltam às casas cabisbaixos. Não desconfiam por que. E todos estarão firmes na próxima festa que houver.

O que preside a vida do povo durante a semana é a televisão. Calendas pega apenas uma estação. Da capital. Mas, não é da sua capital, não. É a de um estado vizinho. Isto, porém, não impede em nada a supremacia da tevê sobre tudo. Visitinhas, festinhas, conversas. Mata qualquer assunto com psius! e caras feias. As fofoqueiras incorrigíveis têm que se esforçar para impressionar os ouvintes com escândalos de proporções convincentes. Senão, a televisão não deixa. Televisão, não: as novelas. Todos engolem novelas. Mas, se lhes perguntarem o que aconteceu no capítulo anterior, ninguém se lembra mais.

Outra campeã da preferência popular é a loteria esportiva. Todos sonham com os milhões e bilhões sem fazer força. Ninguém vê a cor de um tostão. E não é que continuam jogando?
Futebol também é alvo de ávida aceitação. Ninguém conseguiu ganhar nem ao menos experiência com o tal de futebol do interior. Mas, o João Santos, dono da Papelaria Zulu faz as malas para se mudar da cidade todas as vezes que o time perde. Um dia, ele vai de vez e abandona Cristóvam, o jornaleiro, amigo inseparável, caluniador inveterado, tarado por um pretexto para soltar foguetes pró ou contra, não interessa.
Há um cirurgião apaixonado pela profissão, que sempre que extrai alguma coisa importante das entranhas do operado, enfia o troço num vidro e sai entusiasmado, mostrando para todo mundo, de porta em porta, nos bares, nos escritórios, sei lá.

As casas de prostituição andam às moscas. As prostitutas — tal é a obsessão pelo dinheiro — não conseguem mais esconder as intenções segundas que sempre foram as primeiras. Não enganam mais ninguém.

Como é a vida de um calendense pobre? Semelhante à de qualquer outro em igual situação nas cidades vizinhas e nas vizinhas das vizinhas, ou seja: em todo o país. Nasce. Quando cresce um pouquinho, aprende a apanhar de chinelo, correia, vara e é contemplado com a chamada educação, que consiste em transformá-lo em bode expiatório dos traumas e recalques do pai e da mãe, que, por sua vez, adquiriram traumas e recalques da mãe e do pai. Durante o dia, o menino calendense é solto na rua em companhia de meninos e meninas de idade e condições idênticas às suas. E, quando volta para casa, apanha porque brigou; porque não brigou, apanha. Apanha porque quem bate descobriu que é gostoso bater.

Um dia inventam um castigo maior: grupo escolar. As professoras, semi-analfabetas (dado o fracasso das escolas normais), ganham uma miséria, e em sua maioria consideram suplício lecionar diariamente. Somemos o ordenado ridículo da professora à sua incompetência profissional, à calamidade pública que são os livros didáticos, à tortura que é aturar crianças endiabradas e famintas. Somaram? Somemos isto ao ambiente que os meninos encontram em casa: pai, casos há, bêbado, dinheiro sempre curto, alimentação indigna, lamentações, pancadarias, berros.

Não nos aprofundemos muito. É melhor assim. Meu ônibus parte daqui a cinco minutos. É o tempo suficiente para eu ir ao sanitário vomitar o almoço e curar de uma vez por todas este enjôo de estômago.
 

Varginha, 1971

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