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Marcos Resende Histórias

Marcos Resende Histórias

A Vida Como Ela É

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CONTO-RELÂMPAGO


Ele, depois de alguns meses sem contrato profissional, voltou a trabalhar. E voltou com tudo, convidado com pompa e circunstância por uma empresa de primeiro mundo, para uma função à altura do que ele sabe fazer bem; com remuneração condigna e privilégios justos.

Ah, mas foi só o primeiro conhecido saber, e a notícia se esparrama pelo chão pior que batatinha quando nasce. O telefone — mudo havia quase 8 meses  — agora não para mais! No Facebook, onde nem um "olá" rolava, agora curtem qualquer bobagem que ele põe. Os amigos? Gente, como certos amigos são engraçados, puxa vida! Sempre tão ocupados e agora, de uma hora para a outra, parece que combinam e reaparecem. Todos. De uma vez. E chegam com uma fome!!! Sim, deve ser, porque só falam em sair pra almoçar, jantar, cafezinho, convidam pra churrasco, "happy hour", pescaria...

E ele, filosoficamente, acostumado a períodos de vacas magras e gordas, cada vez mais se convence de que o ser humano, como insistia o Abujamra, é realmente "uma experiência que não deu certo. Desculpem, mas, infelizmente, o papo terá que terminar aqui, porque o telefone está tocando. Os dois ao mesmo tempo, o fixo e o celular. Alô...


(A Vida Como Ela É tem este título em homenagem a Nelson Rodrigues, o gênio que deu origem à série.)

 

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O Circo de Todos os Sonhos 02

Márcia.jpg 

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01.
Para que tudo fique devidamente explicado e ninguém venha, depois, botar defeito me chamar de mentiroso, vamos registrar o preto no branco, acertar os ponteiros, desfazer as dúvidas agora, que ainda dá tempo, porque daqui a pouco, a narrativa desembesta morro abaixo, e aí não há quem segure, fica todo mundo por entender: o que é que foi? Como é que foi? Quem? Quando?
Comecemos por deixar bem claro as datas: o cabaré voltou a existir no sábado de dezembro, dia 19, número mágico e citado nesta história até a exaustão. Agora são seis horas da manhã do dia 22, terça-feira, quarto dia. Helicópteros da polícia da capital, desde domingo sobrevoam a região. Voam baixinho, não pousam. O piloto olha através de binóculos. Não enxerga ninguém, as ruas estão vazias.

Por que? Mal se puseram a par da volta do cabaré, e viram com os próprios olhos a materizalização do absurdo, as donas de rendez-vous e boates, assim com o as inquilinas, não quiseram saber: juntaram dinheiro e coisas de maior valor, a roupa imprescindível, trancaram bem trancados portas, janelas e e portões, agarraram seus homens e, as que podiam ir de carro foram de carro, as que não podiam foram como puderam, mas com pressa — eu juro que estavam com pressa!

Sobrou a periferia. A ralé. As putas pretas, grávidas, banguelas. As putas velhas, paralíticas. As putas com câncer. Os cachaceiros estuporados. Cidadãos e cidadãs que não foram avisados de nada. Se foram, nem perceberam. E só começaram a se dar conta de que alguma coisa diferente estava acontecendo, quando a polícia resolveu apanhá-los um por um, à guisa de "repressão enérgica à prostituição e a ao vício, ao mal que ambos inoculam na sociedade, solapando os alicerces da família, da tradição, da moral e dos bons costumes".

"Há que se coibir o abuso, há que extirpar a corrupção, sob qualquer forma que ela se nos apresente, pois até o sobrenatural, até o próprpio Belezebu, burlando a vigilância perpétua dos anjos, lança uma luva de desafio no rosto dos homens de bem, simbolizada por este antro diabólico de subversão carnal, expelido na noite de sábado pelas chamas do inferno!" — conforme trecho da "Mensagem de Alerta" que o Meritíssimo Juiz de Direito, Bacharel Alberto Lopes Medina dirigiu ao povo, através dos microfones da Rádio Jornal de Calendas.

De forma que a briosa polícia apanhou um por um os pinguços (velhos, com cirrose), as putas desfiguradas e — o de sempre: surras, pequenos divertimentos, hospedagem por vinte e quatro horas. No dia seguinte, olho roxo, corpo em petição de miséria e... rua!

O Cabo Bernardes e seus homens, não fosse a ameaça de excomunhão feita por Padre Camilo, voltariam de muito bom grado ao "antro diabólico". "Jamais sairíamos de lá, resistiríamos até o fim, se disso dependesse a segurança da cidade e da pátria!" — proclamaram desassombradamente, merecendo aplausos e elogios do senhor prefeito, do senhor juiz de direito e de todos os demais senhores e autoridades civis, militares e elesiásticas.

Todos naquela terra eram muito religosos e medrosos: trancaram-se em casa, enfiaram-se em fazendas, roças, chácaras, sítios, ceveiros, casas de campo. Entocaram-se nas cidades vizinhas: Três Estrelas, Novais de Meneses, Bocaxim, Marueiros, Cordiópolis, Caravana. Muitos se mandaram para as capitais. Alguns emigrantes, acreditando mesmo no fim do mundo, voltaram aos seus países para rever os parentes, antes da hecatombe universal: alemães, italianos, sírios, portugueses, espanhois, sul-americanos, um russo, um casal de gregos e um hindu. Em Calendas, além das autoridades e funcionários públicos, permaneceram, no máximo, vinte mil pessoas.

No quarto dia, terça-feira, 22 de dezembro, às dez horas da manhã, os fantasmas cismaram de se mostrarem à luz do sol. Sem ultrapassar o perímetro destinado à zona boêmia, saíram às ruas, em grupo, descontraídos, felizes:

deputados,
médicos,
gigolôs,
poetas,
fazendeiros,
músicos,
padres,
bailarinas,
cozinheiros,
lésbicas
garçons,
estudantes,
comerciantes,
bancários,
militares,
vigaristas,
carpinteiros,
viajantes,
pederastas,
engenheiros,
capitalistas,
padeiros,
advogados,
dentistas,
professores...

E as maravlhosas putas vestidas com trajes leves, usando leve perfume, levando chapeus, sombrinhas, abanando-se com leques, despreocupadas e alegres — de tudo fazendo festa, enxergando festa em tudo.

A escória, o rebotalho, gente que, por um triz, não virara vegetal ainda, aparece à janela, à porta. Espiando. Maria do Vinagre, Ana Manca, Ana Fuinha, Timburé, Fuminho, Marieta 311, Francesa, dona Miau, Sebastião do Pé Inchado, dona Sapa, Canuto. Espiando.


Os cavalheiros e as damas entravam nas boates e nos rendez-vous trancados. Corriam em cima dos trilhos. Pegavam terra com a mão. Trepavam pelos telhados. E tudo queriam ver, xeretar, fossar, mexer. Se alguém pediu, eu não sei. Se alguém pagou, não fui eu. Só sei que uma orquestra resolve enfiar baile na rua. E quem resiste? Você? Os pares vão se formando. Naturalmente. Espontâneos. Cresce a festa, cria corpo. Helicópteros vâo e vêm, balanço de colibri.

A ralé ordinária e maldita, pouco a pouco vem chegando, riso acanhado, sem dente. Timburé, Ana Fuinha. Por ser a festa narua, se julgam sócios do clube, se põem a dançar também. E se aproximam sem medo, porque medo não têm, de nada. Fossem ter medo, teriam da vida, da forme, da miséria, dos micróbios, da polícia. Marieta 311 se agarra com Sebastião do Pé inchado, Fuminho com Francesa, Canuto com dona Sapa. Nos megafones, os pilotos gritam ordens, ameaçam. Mas, ouvir como, meu capitão, com a orquestra tocando tão alto? 

 

02
Valéria Basilissa Cavalcanti de Albuquerque, cognominada a Dama da Noite — prostituta por amor, nobre por acidente, milionária por azar ("Meu dinheiro me pesa mais do que uma cruz") e por sorte, muito bonita, pega um rapaz pela mão. Desaparece com ele na Cantina Moulin Rouge, deserta e sem cadeado. Atravessam as paredes. O salão rústico. Europeu. As pareces recobertas com madeira envelhecida. Caboclos pitando palha, pretos velhos de cócoras, índios, búzios e serpentes entalhados na madeira. As mesas toscas. Os bancos. O assoalho muito limpo. Asseio, ordem, bom gosto.

Atravessam as paredes. As mãos do menino tremem. Valéria é bela e cruel. As mãos do menino suam. Valéria é a mais bonita, a mais desejada, a mais temida. As mãos do menino apertam. Atravessam as paredes. O quarto é todo de espelhos. A cama colonial. Espelhos cobrindo teto, paredes, chão.

— Despe-te inteiro, meu anjo — ordena Valéria ao jovem. 
Ele obedece. Ele treme. Valéria dos Trinta anos. Fama de má e de boa.
— Estás com medo de mim meu bem? Responde! vamos, meu animalzinho assustado, meu pombinho, estás tremendo? Tens medo, meu amor? Hum?
— Tenho... Sim, senhora..
— Como és tolinho! Se me obedeceres direitinho, não te acontecerá nada! Quantos anos tens?
— Dezesseis.
— És estudante?
— Sou.
— És bem jovem, é verdade... (olha-o de cima a baixo, nu...) E bem crescido, também. Ajoelha-te a meus pés!


Ele se vê refletido em todos os espelhos, até infinito. Em cima, em baixo, à direita e à esquerda, em frente, atrás: seu terror multiplicado pelo desejo, multiplicado pela expectativa, multiplicado pela surpresa. Valéria, uma cama e ele, girando em torno de espelhos — caleidoscópio gigante.

Truque, jogo de espelhos — e tudo desaparece. Olha para cima e para os lados: vê espelhos. Cada espelho contém um outro espelho dentro de si, como se cada um fosse um universo. Percebe que se perdeu, procura por si mesmo e não se vê. O quarto roda como uma roleta de espelhos. Sente-se intoxicado de espelhos que se refletem. Envenenado. Quer fugir. Levanta-se. Corre. Não há portas, há espelhos. solhepse áh :satorp áh oãN. A tontura. Náusea. Vontade de vomitar. O murro, em vão, no indestrutível. O reaparecimento súbito da cama, coberta com lençois implacavelmente brancos e limpos. Localiza-se geograficamente: pode se situar atrás da cama embaixo da cama, em cima, à direita. Experimenta e dá certo. Serve para tranquilizá-lo um pouco: a lógica voltou a vigorar no mundo. Medo. Náusea. Mal-estar.

A cura através do susto: Valéria — entre a cama e ele — ressurge loura e de azul. Sorriso nos lábios. Desdém. Chicote na mão.
— Não te ordenei que ajoelhasses? Como poderei confiar em ti, se já me desobedeces na primeira ordem que dou? Terei que te castigar. 
Pálido, rígido, de joelhos, ele não tem o dizer. Valéria passeia em volta. Fala-lhe com carinho:
— Sou tua Dona, tua Senhora, tua Rainha, sabes? E tu, meu escravo. Olha nos meus olhos, meu amor; entre nós, deverá existir apenas uma pequenina lei...         (Valéria acaricia-lhe o rosto com o chicote, olhos perigosamente azuis como armadilhas no mar) — Eu mando e tu obedeces. Alterna inclemência e ternura. É ríspida, desdenhosa e doce. — De vez em quando, me desobedecerás de propósito. Por querer. Para que eu possa te maltratar com este chicote. Se eu perceber que estás deixando de desobedecer para não seres castigado, te açoitarei com maior furor. E espalharei obstáculos e ciladas, construídos com argúcia, para que tu não consigas cumprir o que ordeno. Cairás como um coelhinho. Ai, que delícia! Como apanharás! Bate nervosamente o pé no chão.
— Beija meus sapatos, escravo! —  Ele vacila. — Beija meus sapatos, escravo! O chicote estala no ar, não o atinge: avisa-o. Ele beija. — Tira meus sapatos, escravo. Dancei tanto! Meus pés estão suando!

No silêncio do quarto, ouve-se apenas a respiração pesada do servo e da soberana e ... o lepe! da correiinha do sapato sendo desatada.
— As meias. Cuidado para não desfiá-las. 
Valéria — coxas sublimes 
— A calcinha! Vamos, não tenhas pudor, seu bobinho!
As nádegas novas e tenras, opulentas e rosadas. 
— O sutiã! Assim... Tenta de novo... É assim mesmo, meu pequeno selvagem, meu pequenino bugre.
Seios redondos. Soberbos. Biquinhos firmes. A fêmea em pêlo. E o perfume.
— Como vês, escravo, me puseste nua. Deita-te, pois, a meus pés para as formalidades de praxe, o ritual de posse. — Grita com rispidez: — De bruços, o rosto colado ao chão!

Ela põe o pé direito sobre a nuca do menino.
— Eu, Condessa Valéria Basilissa Cavalcanti de Albuquerque, faço de ti meu escravo, meu cativo, coisa minha, objeto meu; e sobre ti assumo o direito de vida ou de morte, assim como o de te infligir punições, segundo minha vontade, por qualquer motivo, cabendo unicamente a mim decidir a natureza do castigo, que correrá por conta de minha imaginação e capricho, para gozo meu, deleite meu, para meu prazer e divertimento.

Senta-se na cama.
— Aproxima-te.


03.
Quarto dos Espelhos. A Condessa Valéria Basilissa Cavalcanti de Albuquerque sentada sobre a cama, muito loura, perigosamente bela, soberana e nua. A uma distância de cinco metros, um menino dominado pelo terror, deitado no chão de espelhos, tentando recuperar o sangue frio para arquitetar um antídoto com o absurdo, e fugir.
A moça, entetando, não lhe dá tréguas.
— Aproxima-te.
Ele faz menção de se levantar.
— Arrastando-te, escravo. Não ouses ficar de pé na presença de tua Senhora! Vem... Assim... Deita-te de costas para o chão, sob meus pés. Vira-te. Não, aproxima-te mais! Quero pisar em ti. Acariciar teu peito. Pisar!
Ele solta um gemido seco. Ela se pusera de pé, de sopetão e equilibrando-se sobre ele. Ri. Senta-se de novo.
— Agora, desce ainda mais mais teu corpo. Assim... Quero pôr a planta de meus pés em teu rosto. Gostas. São macias? Responde!
Calca-o com os pés.
— Responde!
— São.

O que ele via eram dois pés enormes lhe esmagando a cara. Via a cena estampada no teto, à direita, à esquerda, no chão: ele, deitado no espelho e Valéria Basilissa Cavalcanti de Albuquerque, com todo o peso de seu nome, seu condado, seu fascínio desumano e seus pés macios e bem feitos, sobre seu rosto.
— Lambe meus pés, escravo!
Ele ia se sujeitar. De algum tempo para cá resolvera cumprir passiva e automaticamente a vontade dela. Ele já ia começar a fazer o que ela queria. Um segundo de reflexão e, ferve-lhe o sangue, um raio de revolta ativa-lhe o cérebro, o corpo de atleta; num pulo, põe-se de pé, dá um salto para trás e imobiliza-se em posição de ataque, como os lutadores e as feras. No rosto, raiva. Nos olhos, raiva. Fita Valéria. Ela sorri como se estivesse à beira de um orgasmo. Ergue o chicote, imperativa:
— Ajoelha-te, escravo.

Dentro dele, a luta entre o seu instinto de macho, atavicamente poderoso, dominador, soberano e arrogante, conta a fêmea, secularmente submissa, atrevendo-se, agora, a exigir-lhe coisas a pisoteá-lo.

A primeira chicotada acerta-lhe o ombro esquerdo, a seguinte, pega-lhe numa das pernas. Ele, como um leopardo, atira-se sobre a mulher. Escorregadia e ágil, Valéria se diverte imensamente (chicoteia-lhe as costas), prometendo não lhe bater com muita força, porque é a primeira vez e ela não quer machucar logo no princípio, um escravo que ainda lhe trará tanto prazer (atinge-lhe o rosto, sangra) no futuro, como está lhe dando agora, e lhe agradece (a chicotada pega-lhe em cheio no peito) a oportunidade de domar seu escravo com as próprias mãos, porque, nem sempre...
Ele consegue tomar-lhe o chicote.
Ela se assusta. Olhos azuis dardejam desprezo, cólera. Depois, medo.
— O que vais fazer, agora? Me bater?
— Sim, minha senhora, se vós me permitirdes.
Desespera-se até as lágrimas.
— Por favor, não faças isso!
— Não me impedireis, não é?
— Eu te suplico, me perdoe!
— Não adiantará.
— Eu te peço de joelhos!
— Nem assim. Se tendes medo ou não de apanhar, não vem ao caso, minha senhora. Vosso pedido de perdão não me comove. Vossa beleza não me sensibiliza.
Levanta o chicote. Valéria solta uma gargalhada. O chicote se desmaterializa da mão dele, indo se materializar na mão da moça. Ele toma impulso para se lançar como um projétil sobre a condessa. Escorrega e cai. Em seguida, não consegue mais se pôr de, pé porque o chão tornara-se movediço sob seu corpo, permitindo-lhe, no máximo, que ficasse de joelhos.

Valéria, vagarosamente, chega até ele. Pega-o pelos cabelos. Solta-o. Fala com brandura.

— Se eu te avisasse que seria infrutífera qualquer reação que porventura pudesse pretender, tu me terias privado do prazer que senti quando te surrei; quando caíste impotente ao chão e não conseguiste mais levantar-te; a cara de pânico que fizeste, quando meu chicote sumiu de tua mão.

Açoita-o nas costas, uma, duas, muitas vezes com muita força, com ódio, com maldade. Ele urra de raiva e de dor. Ela grita para ser ouvida, enquanto o chicote espanca, golpeia, fustiga, açoita, vergasta:  

— Estás vendo? Posso fazer de ti o que bem entender. Castigar, pisar, bater. Se levantares, cairás. Duvidas?
Empurra-o levemente com um dos joelhos. Ele perde o equilíbrio, precipita-se ao chão. Ela passa-lhe o pé no rosto, lentamente, por maldade, por capricho. Pisa-lhe braços e mãos, com delicadeza, para humilhá-lo, não para machucá-lo.

Longo silêncio. Vargosamente, como veio, Valéria volta à cama.
— Onde paramos, mesmo? Ah, sim, estavas lambendo a sola dos meus pés. Vamos recomeçar. Aproxima-se, escravo. E — não te esqueças: arrastando-te!

Quando ele chega à distância que ela deseja, pára-o com o pé.
— Recomecemos. Tira meus sapatos.
Ele estende a mão. Recebe uma lambada.
— Com a boca, escravo. Não ouses colocar tua mão em mim. Tu te rebelaste. Não mereces contemplação. Com a boca, rápido!
O moço volta a fazer tudo mecanicamente.
— Eu te implorei que não me batesses, não foi? Era fingimento, é claro, mas tu não sabias disso e te recusaste a me perdoar.
Os olhos azuis fuzilam. A boca muito vermelha, sensual e demoníaca. A voz, em tom de ternura:
— Escravo, implora, pede, roga, suplica, que talvez eu te conceda aquilo que, brevemente vais desejar com todas as forças de tua vontade. Suplica, escravo, implora para lamber meus pés!

Ele não lhe respondeu. Não moveu um músculo do rosto. Foge para dentro do espelho mais próximo, depois para o seguinte, para o outro, para um outro mais distante e depois para um outro e para um outro além. Mas, de nada adianta, porque está acontecendo a mesma coisa em todos os espelhos. Silêncio. Passaram-se quase cinco minutos. Estranho... Por que estaria ela lhe dando tanto tempo?

O espelho sob seu corpo cai bruscamente de temperatura. O menino olha para a mulher.
— A nossa brincadeirinha de gato e rato está apenas no introito, no aperitivo.
O espelho se transformara numa lâmina de gelo. Ele tenta mudar de posição. Não consegue. Geme, grita, urra:

— Eu vos peço, deixai-me lamber vossos pés!
— Ah, mas que escravo fingido!... Quero crer que estás querendo me lisongear.... — dedinho na boca, ela é a crueldade sob a forma de ironia.
— Não, não! É verdade! Deixai-me lamber vossos pés, eu vos imploro, minha senhora!
— Que garantia tenho eu de que estás sendo sincero? Há pouco me agrediste, querias até me bater.
O gelo passa a produzir leves descargas elétricas que, gradualmente, vão ganhando intensidade. O moço quase enlouquece:
Eu vos suplico, minha senhora, deixai-me obedecer todas as vossas ordens. Nada mais desejo além disso, juro! Sou vosso escravo. Serei fiel para sempre. Por favor, chicoteai-me, pisai-me, deixai-me beijar vossos...
Desmaia.

04.
No Quarto dos Espelhos, o jovem acorda. O chão volta a ser como antes. Valéria o observa. Doçura azul nos olhos. 
— Agora nos daremos bem, não é assim, meu anjo?
— Sim, senhora.
— Vem, deita-te de costas, sob meus pés, como no início.
— Sim, senhora.
— Lambe meus pés, escravo!
Pisa-lhe o rosto com o pé esquerdo e comprime o direito contra seus lábios.
— Beija meus pés, escravo!
Pisa-lhe o peito com o pé esquerdo e comprime o direito contra seus lábios.
— Beija meus pés, escravo!
Ela o espezinha o quanto quer. Ele vence todo o orgulho. Agora, calça-lhe, com a boca, chinelos de cetim, porque ela não pode pisar no chão frio.
— Estamos nos dando tão bem, não é? Quero que sejas muito feliz comigo. Serás meu cavalo. Sim, serás meu cavalo. Deu-me vontade de cavalgar-te. Prepara-te. De quatro!

Ele se põe na posição. Valéria Basilissa pula em seu lombo, despudorada, mandona e dona. Deliciosa e nua. Com as coxas, pressiona-lhe o corpo para que ele corra.
— Vamos, vamos, mais depressa! Galopam ao redor da cama. Valéria parece estar satisfeita. Ri muito. Os chinelos arrastando-se ao chão. — Mais depressa, cavalinho! Tenta estimulá-lo com a chibata. Difícil, porém, acertá-lo na posição em que estão. Pega seu chinelo de couro e agora deu certo, o cavalo, na imaginação da moça, dispara como um corisco. Valéria, impiedosamente, batendo-lhe nas nádegas com o couro. Sua fruta toda molhada. Escravo e dona molhados de orgasmo e de suor.

— Leva-me até a cama. Estou fatigada, escravo. Ela desmonta molemente. Cai sobre os lençois. Ele deita-se no chão como um cachorro velho. Ouve os gemidos da mulher, não os entende a princípio ou não lhes presta atenção, ou crê não ser da sua conta, até, por fim, dar-se conta de que aquilo é dengo de fêmea, berrante chamando boi.
— Lambe meu corpo inteirinho, meu anjo.
— Estais mandando?
— Estou pedindo, meu bichinho, meu carneirinho, meu homem.

Ele avança. Puxa-a pelo braço. Faz com que suba à cama. Subjuga-a com o próprio corpo. Suga-lhe os lábios. O macho desperta erguendo o símbolo de sua grandeza. Ela o toma entre as mãos, aconchega-o entre os seios, acaricia-o como rosto. A língua morna e hábil contorna o fálus com volúpia. Como um sol, ele se põe entre os lábios dela, majestoso e invencível. Oculta-se em sua boca, como se nuvem ela fosse. A língua da moça desce e devora as duas esferas vivas. Aquece-se ao calor da boca. Desliza pelo peito rijo, demora-se no umbigo, sobe às orelhas, lasciva. Valéria, ao pé da cama, beija-lhe as coxas, os joelhos. Beija-lhe os pés, submissa; escrava, lambe-lhe os pés. Ele a possui, descansado. Sem pressa, sem vingança. Procura os seios, desfruta-os. Com lascívia, lábios, lingua, busca os caminhos da flor, que se oferece como fruta, ansiosa como noiva, indomável furacão. 

Sobre o corpo de Valéria solta o peso de seu corpo. Penetra-a com bravura, sem rancor, honestamente. Ela sente, corcoveia. Ele aperta-lhe o arreio, puxa a rédea, esporeia. Ela pede, ele lhe bate, esbofeteia-lhe a cara, dá de chicote em seu dorso, mas, sem tirar, cavaleiro.

Chega a hora de Valéria, fogosa, resfolegando. Ele, agarrado à potranca, suando, enfiado nela. Ele jorra, seiva forte. Ela ainda espinoteia. O fogo já dominado vai se extinguindo, se apeia. Na cama, exaustos, se aquietam, cada qual para o seu canto, relaxando, adormecendo.

São Paulo, 1976.

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O Circo de Todos os Sonhos 01

 

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Existiu um circo que estorquiu toda a beleza do universo e fez a virilidade dos homens e dos deuses se escoar em cópulas inifinitas. Existiu um circo que servia aos convidados finíssimos doces afrodisíacos, enquanto se ouvia a música sensual da banda feminina e nua. Existiu um circo que fazia com que qualquer mortal que porventura ocupasse um lugar, quer nas poltronas quer nas arquibancadas, esquecesse seu nome, profissão, passado e ambições. Não por efeito de qalquer sortilêgio, mas porque ali sobrevinha a lucidez. Da lucidez, a coragem. Da coragem, a decisãp de mandar tudo à merda, porque ali ficava bem clara a imbecilidade total que tudo o mais representa.

Existiu um circo onde havia muitas mulheres. E algumas delas eram as as mais bonitas de todas. Eram mais bonitas que tudo. Eram de uma beleza que doía tanto que poderiam torturar os homens com um simples aceno de diedo. E seus pés eram os mais bonitas, assim suas nádegas e seios, suas mãos e seus cabelos. Seus corpos em dia de calor quando elas se despiam dos gazes e das sedas e passavam nuas pelos picadeiros ou camarins, queimavam como a estrela mais radioativa, e, por tanto cegavam. Seus olhos de inacessívelorgulha ardiam cmo pimenta. Suas palavras de "não" corroíam como ácido. E não havia quem resistisse e não ficasse eternamente escravo de qualquer uma delas assim que a visse. Mas, escravo de verdade, gato e sapato, moleque de recados, cachorrinho a calçar sua sandálias e a engraxar suas botas, a vestir suas longas meias e, a lamber seus pés. Assim, eu vi, submissos (e muitos que não mentem garantem que também viram) cirurgiões famosos, catedráticos, senadores, arcebispos, dois professores de física quântica, um arquiteto e dezenas de músicos, atores, estudantes e poetas. Todos eles escravos e felizes, porque cada uma delas era a sínteresa das 7 Maravilhas do Mundo, e o homem que tivesse a sorte de pasear a noite com qualquer uma,qualquer que fosse poderia se consdirar bem amado dos deuses  e nunca voltaria a ser o mesmo.

Existiu um circo que foi chamado ouma vez O Circo de Todas as Deuses. Contam 

 

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J.B. Desceu Aos Infernos

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E não subiu aos céus, de imediato. Mesmo porque, na verdade, nem sequer houvera descido ao inferno ou a qualquer lugar semelhante. Ou mesmo a lugar algum. Emergira da tumba com quem sobressurge de um mergulho. Abriu os olhos, temporariamente selados pelo intempestivo lacre da morte e, agora, o que tem pela frente, J.B. indubitavelmente ignora.

Faz um balanço em sua memória. Lembra-se dos dezoito degraus da escada que subiu aos pulos. Acredita, de forma um tanto imprecisa, haver atravessado o pequeno corredor ao qual davam as portas dos quartos, do banheiro e da copa. E, em circunstâncias normais, poderia até apostar que entrou no seu quarto cheio de flâmulas pelas paredes, e fechou a porta numa batida enérgica e seca. E deitou na cama e fechou os olhos.

Ninguém é eterno. J.B. sabe disso. Chega um dia em que se costuma morrer ― aprendera. Não passou pela sua cabeça vulgar que ele pudesse, porventura, ser a exceção privilegiada ao estabelecido. Ninguém é eterno ― pensou. E daí, qual a diferença que para ele existe agora, entre pensar nisso ou no carro do Doutor Antônio Carlos Pinhegas (teria que aprontá-lo até amanhã sem falta, na oficina ― lembrou-se).

Que diferença existe para ele, agora, entre rememorar uma letra de samba ou as surras que apanhou da mãe, irritada, porque ele sempre tivera a mania antipática de não fazer nunca uma coisa errada. Importa, a esta altura, coordenar quaisquer pensamentos que nunca colecionara antes, e que nem de perto suspertara de que neles alguém pudesse, alguma vez, pensar?

Espaço. Luz. Silêncio. E J.B. irremediavelmente lúcido. E, o comum J.B. que sempre jotabeliscou muito pouco das luzes e do mistério da vida. Ambição? Comuns. Amores? Convicções políticas? Filosofismo? Cosmovisão? J.B. os tem, como não? No vasto pasto do seu jotabemaventurado cérebro rumina as opiniões ditadas pelo senso comum. Policiadas pela censura e contra-senso a serviço de incomuns interessados. Não só as acata, como ainda as engole sem mastigar. Como quem ingere capim e não discute. Não supõe que haja outra alternativa além da que adota, segue e não vacila. Sempre foi assim e ― se assim o fora para o seu avô, seu pai, seu bisavô ― assim será também para o possível filho que haja cometido. Jotabestamente.

Habituado aos carros e escarros dos impacientes fregueses da oficina, ele acostumara-se organicamente, a não ultrapassar os limites prescritos pela condição que o sistema lhe impusera. Seu avô, mecânico. Seu pai, mecânico. J.B., mecânico. Não há por que fugir. E por que não dentista, eletricista, artista, padre, marinheiro? Não. Será mecânico. Está no sangue. Sem megalomanias. Sem Meca alêm do cânico cano de descarga e do motor do carro do Doutor Pinhegas, que, querendo ou não, terá que entregar amanhã. Impreterivelmente.

J.B. e o espaço branquicela e vazio. Sem norte, sem sul, sem qualquer referência que determine o rumo a seguir. Tanto faz vir. Ou ir. Ou rir. Pensar ou não pensar? Tanto fez ou faz e tanto se fará. O que faço aqui? O que é que estou fazendo aqui, que nem aqui me atrevo a intitular de aqui? O que eu perdi aqui? Que horas são agora? O que me aconteceu? Onde é que vim parar? É muito cedo? É tarde? É de manhã? É noite? Eu devo estar sonhando e agora mesmo acordo. É claro, estou sonhando e de repente passa e voltarei ao quarto da pensão dos ratos. Na pensão, um rato é o que eu tenciono ser e é o que até hoje fui. É o que ambiciono sempiternamente ser e, sem tirar nem pôr, serei até morrer.

Morrer? Estranho. Será que a morte é isto? É o "onde estou" pedindo explicação plausível? Mas, que sono eu sinto! Se não tivesse absoluta certeza de que estou dormindo em minha cama, em meu quarto, sob as flâmulas e sobre o canário bela, lá embaixo, enchendo o saco do verão e de janeiro... Se eu não estivesse certo de que ― agora mesmo ― eu acordo de acordo... Se eu não soubesse que só estou sonhando... Que vontade de fumar que vontade de fumar que vontade de fumar que vontade de acordar para depois fumar. Que sono!

Tenho que descobrir até as nove e meia da manhã, amanhã, o que é que está acontecendo com o motor do carro do Doutor Pinhegas. Fiz o que sabia e o que eu não conhecia. Revirei. Mexi. Fosei. Lubrifiquei. Benzi. Ah, se até as nove e meia eu não o consertar!... Deixe-me ver... O Doutor ficará pasmado, a princípio. Avermelhará, em seguida. É cólera. E daí pra frente, gritos, ameaças, recriminações e adjetivos. Provavelmente, promotor, juiz, condenação à morte e execução em público a servir de exemplo a todos os mecânicos pretensiosos.

Já me vejo andando. Compassadamente. Como Tiradentes. Para o cadafalso. Falseando o passo, apanharei na cara. E cara a cara à forca, então, será me confessar ao padre adrede preparado que preparará meus arrependimentos. Será na praça, é claro. Onde mais poderia ser? Serei conduzido pelas ruas públicas ao lugar da forca para que nela morra morte natural, para sempre, e que depois de morto me seja cortada a cabeça, onde, em o lugar mais alto, dela será pregado em um poste alto. Até que o tempo a consuma. E o meu quarto será arrasado e salgado para que nunca mais no chão se edifique. Não faltarão as cores, cores, cores, cores. Cores dos vestidos. Não faltarão as mulheres de nervos de aço. Minha mãe, chicote em punho, molhada de gozo, tesuda. Não faltarão tambores, nem mormaço, nem clarins. E nem os olhos duros por detrás dos muros pré-gozando o fim. O meu fim.

Já virei o motor de cabeça para baixo. Que vontade de fumar. Será que tomei banho? Tomei-nãotomei-tomei. É claro, não tomei. Cheguei, deitei, dormi. De macacão e tudo. Estou de macacão, nem tinha reparado. As mesmas velhas manchas de óleo e graxa e suor. Trabalho. Acordar, acordar, acordar, acordar, acordar! Como eu desejaria acordar agora. Que sono comprido, meu Deus! É bem verdade que já acordei de sonos que julgara eternos. Nunca me ocorreu, contudo, ficar tão consciente e lúcido como estou agora. Sem um pesadelo. Sem um sonho. Sem um remorso. Sem nada. Nesta nudez insípida, vestida de macacão sujo, e de braços cruzados. Nunca me deitara antes sem tomar um banho... Sem vestir pijama... Sem jantar, sem nada...

Luz. De onde vem a luz de não enxergo o sol, nem céu, nem lua, nuvem, nem estrela? Onde foi parar a paisagem? O quarto? Espaço. Só espaço e luz. Que luz é esta luz? É fosca, intensa, pálida. Dizer que está escuro é o mesmo que mentir. Mas, positivamente, não me convence este claro sem cores, sem clarões, calor. Acho que ― deixe-me ver ― posso dizer sem mentir que está escuro, mesmo. Não, não. Se não houvesse o claro, o branco sumiria. E, o que estou vendo, é branco.

Não escuto o canto do canário belga e o zoejar das ruas. Por que? Não escuto nada. Nem os sons difusos que escapam da cidade e interpenetram o quarto através das venezianas sempre abertas para entrar ar. Onde estão os ruídos, meu Deus, onde estão os barulhos, onde estão os cheiros? Vontade de aspirar o aroma das panelas. De fumar. Fumar. E de acordar de novo.

Espaço. Luz. Silêncio. Que horas são? Que sono!... Pelos meus cálculos, ainda me sobra tempo suficiente para tomar banho, fazer a barba, jantar, ir ao cinema. E dormir mais cedo e levantar bem cedo para ver se eu chego meia hora antes à oficina e ao motor do carro do Doutor Pinhegas. Ah, se não ficar pronto até as nove e meia! Eu nem pretendo ver a cara desgraçada que ele vai fazer.

Irá ― deixe-me ver ― se transdesfigurar e poderá virar a minha mãe querida quando me batia e sobre mim trepava de chicote e esporas. Era como se sentisse sexualmente um mágico deleite em me seviciar. Em arrancar do pé com lentidão erótica os chinelos lépidos. E me sovar. Surrar. Além das dimensões das minhas magras culpas. Oh, o delírio! O delírio dos olhos nos seus olhinhos brilhantes! Oh, o orgasmo que meu pai não dava! Ah, o fogo que meu pai negava, descoberto ― oh, graças! na pancadaria. Não lhe impressionavam sangue, sofrimento e súplicas. Não se comovia ao ver meu meu rosto se torcer em contorções de dor. ― "Oh, o doce açoite, o cinturão elétrico, o vergão vermelho desenhado a couro no teu corpo nu. E o chibatear divino, divinal delícia!" ― E o incansável braço manejando o látego. E o suor materno lhe lavando o rosto. Guturais gritinhos histéricos, eventualmente, fogem de sua garganta, em meio à cachoeira crescente de ameaças. Ameaça de me aplicar, no futuro, as mais inimagináveis torturas, cada qual mais cruenta e inacreditável. Oh, o prodígio! Suas frágeis mãozinhas e sua saúde débil, da qual tanto se queixa, realizando assombros de resistência física. Se acaso, eu caio ao chão... Oh. que ensejo lúbrico. Ensejo de pisar, pisotear, pisar e repisar em mim. Pisopisar com a sola de seus pés desnudos. De seus pés que pedem ritmo e que lepe-lepe, pés que pesam. Pisam. Orgia, enfumaçada orgia. Palavras borbotando loucas de seus lábios rubros. O ápice aproxima-se. Baba. Bate. Baba. Lept. Ritmo. Baba bá-bá-bá. E bate, bole, brinca. E o som. Respiraçao de porco javali resfolegar rugindo. Pá. Pancada. Grita, morde e goza. ― "Oh, prazer, prazer! Volúpia! Meu filhinho!". 

Espaço. Luz. E o tempo. Posso me mover. Andar. Mexer os braços. Mas, andar pra onde? Não enxergo nada além da branquidão do espaço esbranquiçado. Que horas são? Que sono! O que me aconteceu? Meu Deus, que horas são? Que horas? Espaço. Só espaço. E esta luz inútil alumiando o nada. Nada atrás de mim. Nada à minha frente. À direita, nada, e nada à minha esquerda. E só o espaço em branco. Ausência de uma árvore. Seta. Semáforo. De um cachorro que seja, para que eu possa estabelecer qualquer ponto de referência. 

J.B. não sabe. J.B. no nada. J.B. no claro que parece escuro. J.B. perdido num espaço. Sem cachorrro. J.B. nem morto. J.B. nem vivo. Não está dormindo. Não está sonhando. Está com muito sono e irremediavelmente lúcido e com vontade de fumar.

(de uma ideia de Oreste Maurizio Regispani)

Varginha, 1971


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O Louco da Igreja

Pintura Universal 100.jpg 

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01

Mas, de vez em quando se lembrava dela e era como se lhe possuísse o demônio da amargura.
Quando estava assim, ninguém chegava perto e a igreja ficava envolvida por uma nuvem de silêncio e desespero. Ah, como todos gostariam, então, de ajudá-lo, de recarregá-lo de felicidade; devolver-lhe um pouco da energia luminosa que todos os dias captavam dele; ele, que agora, mais do que o mais necessitado dos aflitos, precisava de uma pequena parcela dessa força para não morrer, e cambaleava despojado, esgotado, oco; ele — o amado, o moço da voz, do relâmpago. A imensa massa de amigos, imóvel nos bancos da Matriz, não conseguia desviar os olhos do rapaz — se arrastando desvairado e seminu pelo piso do altar, a roupa destruída por suas próprias unhas, o coração triturado pelas garras da memória que subitamente recupera-a com a volta da lucidez. Ah, amigo, fica bom depressa que nós já não agüentamos mais vê-lo nesta agonia. Ninguém sabe o que fazer, como agir, remediar, e nos ocorre o silêncio como forma de ajudar, e nos ocorre a angústia como se julgássemos estar, com isto, dividindo entre nós o peso de tanta dor.


— Alba! Alba! Amada corrosiva, monstruosa amada! Ave do mal, insensível colombina, olhar de venenoso brilho, facada de quatro cortes! Alba sem alma, sereia de asas de ouro, noiva da morte e do abismo; bela, bela como o escárnio e a maldade! — A voz lhe saía rouca, arranhada, soturna, como se viesse da garganta de uma caverna. Ele se arrastava, bramia. Por que Deus não o ajudava devolvendo-lhe a demência? Ah, o esquecimento bem vindo, a ambicionada noite nos labirintos da mente! As trevas nas têmporas, a loucura! E quem ousava aplicar-lhe a violenta pancada na cabeça, talvez a solução, o remédio?... A idéia, de boca em boca, ia e vinha pelo templo, mas ninguém se atrevia: e se não desse certo e piorasse?

Os que o conheciam há mais tempo tranqüilizavam os outros: — Já aconteceu algumas vezes nestes dois anos. Não se preocupem tanto, isto passa! — diziam, simulando naturalidade. E se não passasse desta vez? E se ele morresse, tão fraco, não come... O corpo sujo, os urros agarrados de sepulcro rasgando-lhe as cordas vocais, o sangue fugindo da garganta, da carne esfolada. O espetáculo da suprema angústia rastejando entre nós. Quantos somos? Mil? Mais de mil, muito mais. Impotentes, estarrecidos, humanos.

Nove horas depois, exatamente às duas e trinta e quatro da madrugada, a loucura, mais uma vez, voltou a se alojar no cérebro do moço, protegendo-o como carapaça, de suas recordações assassinas. Estava salvo.
 
02

Duas semanas antes de morrer, me chamou pelo nome que me dera (ele me dera um nome) e, depois de dizer coisas sublimes em sua maravilhosa linguagem, conduziu-me, como sempre à porta principal da casa de orações. Neste dia saí com plena consciência da vizinhança de sua morte e me decidi a bater de porta em porta, avisando um por um, rua por rua, a cidade inteira. Não foi preciso, entretanto. Em poucas horas, a notícia se espalhou como calúnia, e no dia seguinte, num raio de cinco léguas, todos os que o queriam bem se puseram a caminho, vindo a confirmar uma vez mais o que se dizia: em São Tiago das Bateias de Ouro não havia um só dos seus vinte e três mil habitantes que não conhecesse e não amasse o louco da igreja. As pessoas que correram para vê-lo, ouvi-lo, tocá-lo nos seus dias derradeiros, nunca o encontraram tão feliz, irradiando tanta força através de seus olhos vidrados e brilhantes de doido varrido. Nunca se ouvira tanta coisa sublime, imortal e verdadeira, desprendendo-se da disparatada e estapafúrdia língua.

O jovem incansavelmente distribuía força e distribuía muita, havendo quem, a princípio, não suportasse o ímpeto da emanação, tendo que ficar no fundo da Matriz até se acostumar. Volta e meia subia à torre e tocava, tocava, tocava os sinos, tocava com força, descia correndo e apertava seu coração de encontro aos outros, beijava alguns no rosto e proclamava sorrindo: O vento da máscara encarnada reconquistou a lâmpada, açucareiro náufrago.

03

Ah, passaram-se tantos anos que já nem sei como fui me interessar por sua história de malogrado amor e pela tristeza insuportável que lhe revestiu os muros da memória com o esquecimento e a loucura. Lembro-me de que fui um dos primeiros a saber, lembro-me de que ouvi contar e quis ver com meus próprios olhos o protagonista da desventurada boda. Mas, a metamorfose veio muito depois. Foi no dia em que Branca, minha mulher, chegou da fazenda, onde esteve passando uns dias com os parentes. Não, não tínhamos nos casado, ainda — eu me lembro porque estava apaixonado e com ciúme. Ela voltara diferente, muito íntima do primo, fria comigo; ela, que não tinha disso! Isto me dava o que pensar e o que sofrer, me predispondo a compreender na pele a desgraça do moço que não queria sair da igreja nunca mais, até que a noiva se arrependesse e voltasse.

Mais do que isto não me peçam, porque sei que não vou me lembrar. Tanto fiz que consegui me esquecer de quase tudo o que me aconteceu na vida, de forma que, minha memória (esse prejudicial baú abarrotado de trastes bestas) encontra-se, felizmente, bem lesada, quase nula. Peço, então, licença para começar a história. Peço atenção para o que vão ler. Peço respeito. Não pedirei, contudo, que me entendam, pois sei o quanto é difícil se apreender o sentido das palavras quando escritas e pronunciadas por mãos e lábios frios e irremediavelmente lúcidos e coerentes como os meus.

04

Ela se chamava Alba, não resta dúvida. Este nome perambulou por muito tempo pelas vozes e ouvidos de Bateias. Ele se chamava o Louco, o Doido, o Querido, o Bem Amado, o Amigo Grande. Seu nome, quase ninguém sabia, nem se cogitava disso. Ele a amava muito e iam se casar. Ninguém mais feliz do que o moço. no dia da cerimônia esperando a noiva, insidiosa esfinge.


A aflição normal, a demora, os amigos levantando suposições, conjeturas: é assim mesmo, noiva atrasa. A demora, a aflição, o suor. O tempo atravessando o limite do tolerável: quede a noiva? A tarde acaba por encher-se de zumbidos: tanajuras, muitas, milhares. Quede a noiva? Tanajuras por toda a igreja, em torno dos lampadários, verão, suor, tanajuras. E a noiva? O calor aumenta. Ninguém se atrasa tanto, a menos que tenha morrido — o calor é muito. Há quem saia: quem aguenta? E esta noiva que não chega? Os homens no boteco da praça refrescam a goela: é um calor sem vento, abafado, e o noivo: "coitado dele!" — as mulheres se compadecem, não poupam recriminações à "rapariga irresponsável", isto não se faz! Palavras de pesar, duras palavras de censura cavalgam no lombo do vento que se desprende dos leques; as damas de Bateias julgam — e não há entre todas elas, uma sequer que não condene. O calor: verão — e a noiva? Mais de uma hora de atraso, já é noite. Ela não vem — os convidados murmuram. Ela não vem — receia o moço preludiando seu desespero, seu desvario.

Mas ela chega trazida pelo som do órgão, deslumbrante e má. Vagarosa, atravessa a nave principal ao lado do pai, pisando na passadeira cor de sangue, de fora a fora estendida. Sorri, mas a quem ela engana? Só ao moço enfeitiçado que caminha ao seu encontro para conduzi-la ao altar. Ele sorri, estende-lhe a mão — ela faz que não o vê. Ele sorri, vai buscá-la. Ela faz que não o quer, apressa o passo, corre.


— O que foi que aconteceu? O que houve? Você viu? — perguntam-se os convidados. — Foi a noiva do moço que passou de passagem, desviou-se de seus braços, atravessou o altar e entrou na sacristia.

 
Nada disso eu vi, me contaram. Ver e saber das coisas e do moço só muito depois, quando minha curiosidade superou a aversão natural que eu tinha às igrejas e às desgraças, e fui conhecê-lo.
 
05

Pretendente da impossível prometida, noivo da desdita, o moço doido desliza como um fantasma através da igreja impiedosamente vazia, sem bodas, sem convidados, vai e vem, suavemente; lentamente, vai; com pés de nuvem caminha ao encontro da amada que não chega; desesperado espera — e semana após semana perambula pelo templo; dia e noite vagueia: ele a procura, celibatário da cama eternamente fria. O moço que eu vi na igreja parecia haver se apoderado de todos os direitos sobre a infelicidade; proprietário único da tristeza, senhor absoluto do infortúnio. Dele, a dor. A mágoa era dele. Circula incrivelmente apressado pelos corredores da Matriz, olha para a esquerda, procura, prossegue, enfia-se pelos bancos, hesita, vira-se para a direita, ansiosamente crava os olhos naquilo que deveria ser sua fugitiva dama, mas... Ah, que agonia mais sem jeito: seus olhos atravessam a ausência, o ar em desespero (sangue atmosférico) e devolvem desapontamento e fel às suas retinas. Vai até o portão principal da igreja; do portão não passa, volta. De longe em longe sobe à torre, olha a cidade inteira que acaba em pastos e montanhas logo ali, dá para ver, é tão pequena. O horizonte (ele olha) às vezes carregadinho de urubus, juntinhos como jabuticabas — outras vezes, ferido pelo pôr-do-sol, saindo sangue — outras vezes, ainda, dominado pelo ouro da manhã, quando o sol é moço e se vêem lá longe as vacas e os bezerrinhos (nem tão longe assim: dá para a gente ouvir os muuus).

Repeti a visita não me lembro quantas vezes (ele era triste). Alternava estados de sobre-humana agitação (quando andava, andava, andava, obsessivamente procurando, procurando), com total imobilidade: punha-se de pé num cantinho e ficava horas parado, quieto, duro. Nem piscar, piscava: ele era triste.

06

Até que um dia foi domingo e os que estavam na igreja, como eu, presenciaram a fantástica mudança, quando em seu coração adormecido coruscam os primeiros lampejos de alegria e ele corre, faz, acontece, solta-se pela casmurra escuridão do templo com a irresistível erupção da felicidade que desembesta a atuar em sua alma. Ah, o moço esta feliz! É ele quem voa pelo santuário em penumbra — norte e sul, o espaço é dele! É dele a palavra! E a esperança (a esperança é dele!). A alegria é dele — e a palavra! A palavra passa a pertencer-lhe, como se a herdasse de um deus, de um feiticeiro. E ele a recebe como um dom, toma posse dela: mais poderoso que um sábio, um camelô, um poeta. Ah, o moço está feliz! Flutua pelos oceanos serenos do espaço, cruzados apenas por ele e pela melodia do vento gerado em foles imensos e transmitido ao salão por dezenas de tubos de metal, fundindo-se ao ar que se respira, gregoriana brisa. Ah, o moço está feliz! De seu corpo a felicidade jorra, a paz aflora; desprende-se a alegria — coração radioativo: ah, este moço esparramando-se como chuva... Ah, este moço doido, raio e relâmpago, olhos faiscantes. Liricamente louco como a dança proibida dos adolescentes, como as serenatas submersas. Doido como os cangurus-relógio, a encruzilhada sensitiva, os bandolins com olhinhos sonolentos de carneiros. Ah, a gloriosa insânia solidamente soldada nas profundezas de seu universo! Os tentáculos da loucura encravados até a medula de sua mente. Ah, o moço — e o cheiro da loucura saindo de seu corpo, o rataplã-plã-plã antes da goiabada, a lua de nove labaredas, a lágrima, a.pérola, o escândalo — ah, este moço doido, dono desvairado da alegria — e ele corre! Corre pela igreja toda, canta, pula, grita, sobe ao altar, abraça o padre; quem se importa em vê-lo em desvario? Quem capaz de o enxergar com olhos de censura, dó ou zombaria? E por que diabos precisa de equilíbrio este maravilhosíssimo pirado? Mostra-se muito conversador, faz perguntas incompreensíveis às pessoas que lotam a Matriz, raramente espera pela resposta, inexplicavelmente acabrunha-se, encolhe-se a um canto, chora, subitamente consola-se porque ouve o tilintar das campainhas de prata tocadas pelos meninos, e quando a missa termina, excita-se com o movimento, mostra-se afável, cortês, ajuda as senhoras a se levantarem, acompanha-as até a porta, indaga-lhes polidamente dos sapatos voadores, da noite à milanesa, do seu amigo Natan (há tanto tempo escondido atrás de uma cristaleira), quer saber se os delegados ainda crescem em árvores, e manda lembranças a pessoas que nunca existiram. Fala fluentemente, tão bem como qualquer pessoa instruída, e, quando encontra quem o ouça com simpatia, conversa durante horas, calando-se, delicado, tão logo perceba no interlocutor o menor vestígio de tédio ou cansaço, o que dificilmente acontece, porque, apesar de quase nunca dizer algo que faça sentido, ele manipula o absurdo com tanto encanto, sua voz é tão agradável, seus dentes tão bonitos, que, quem se põe a ouvi-lo, não o faz por nenhuma outra razão: fica preso à simpatia do demente belo, rosto pálido, olhos fulgurantes, e lhe responde convicto, que os delegados não estão nascendo mais em árvores, e sim, em ostras; que Marlene Dietrich, ao contrário do que lhe haviam informado, não voa mais aos sábados de Aleluia, porque quem nasce em Viena faz tique-tique quando os acendedores de lampião uivam em tempos camarões — e o diálogo prossegue imprevisível como os tribunais e as mulheres, com possibilidades de combinações infinitas como os sonhos e os números, passando de barões a caranguejos, de brinquedos a ditadores, de flores a helicópteros, com o belo moço louco falando como um deus pagão, eloquente como um cigano, deliciando seu público de ricos e pobres, mulheres e crianças, velhos e adolescentes.

07

A igreja, por sua causa, se enchia diariamente. Alguns deles vinham para a missa das seis, e iam ficando, ficando, sem a mínima intenção de sair. Outros, só de passar por perto, ouviam de fora o som modulado e claro da voz do moço maluco e entravam e iam gostando, pois, nem bem se acomodavam curiosos nos bancos, eram efusivamente envolvidos por uma irresistível descarga de amor, alegria e esperança emanados do maravilhoso maníaco, que fazia questão absoluta de dispensar especial atenção a cada um que chegava, reconhecendo-o na maior parte das vezes e chamando-o carinhosamente pelo apelido. Nas poucas ocasiões em que julgava jamais ter visto o recém-chegado, aproximava-se exultante dele, atirava-se aos seus braços, perguntando-lhe o nome e a cor de seu destino (a todos, invariavelmente), estabelecendo as mais inesperadas associações entre uma coisa e outra, e tirando conclusões as mais inacreditáveis, como a que lhe ocorreu e me disse, no dia em que nos conhecemos: "a menina quando sonha com algodão de sangue azul, dificilmente dá banhinho numa estrela barriguda" — afirmação que me deixou embasbacado, não sei ao certo se pelo mistério oculto nas paredes das palavras, ou se pela combinação dos sons, ou ainda, se pela forma definitiva com que foi proferida: seus olhos capturando os meus, me arrastando, escravizando, doce torpor — imperecível, inalterável no espaço e na velhice, pois os anos que cresceram como um matagal sob minha vida — e são tantos — anestesiaram todas as lembranças daquela fase de meu passado, mesmo as mais agudas e felizes, não arredando, contudo, da memória, aqueles olhos de relâmpago de sangue azul, aquela voz de estrela barriguda, a sua miraculosa fórmula de deixar moleques e desembargadores completamente à vontade, naquele ambiente tão desfavorável e rígido; a sua infalível chave a abrir todos os cérebros e corações, a ponto de um general francês, uma prostituta analfabeta e feia, um papai noel, uma menina surdo-muda, uma condessa espanhola, um assassino e um comerciante, com pouco mais de meia hora de bate-papo, tornarem-se muito amigos, tão amigos que até hoje, sempre que podem, se reúnem para matar a saudade, falarem do amigo comum, o alienado inesquecível, e dissiparem o ceticismo das pessoas que tentam explicar o fenômeno com termos e argumentos muito mais incompreensíveis do que as belas palavras soltas do querido doido, que, sem dizer absolutamente coisa alguma (como as letras das músicas estrangeiras, para quem não sabe a língua), operava prodígios de comunicação e entendimento entre as pessoas, amava-as à primeira vista e à primeira vista era amado, porque tudo é tão simples que me envergonho de meu cérebro lúcido e impotente, se comparado ao seu, flutuando na misteriosa estratosfera da loucura; agindo, porém, como o mais inteligente e amoroso dos homens, como o mais cativante dos líderes, isto sem que se diga de sua genialidade em conciliar cortesia e ternura, respeito e intimidade, não abrindo mão de seu privilégio (ele dava a entender que considerava um privilégio) de acompanhar pessoa por pessoa até a saída da igreja, de onde nunca passava, ocasião em que a tratava como se apenas ela existisse, importasse, merecesse. Suas atenções, seu magnetismo bom, sua transfusão de paz, ele os repartia com serenidade (como quem tem diante de si todo o tempo do mundo) e com veneração, como se o fizesse ao mais poderoso dos reis, razão, no meu entender, mais do que suficiente para explicar porque não houve uma única criatura que se tornasse invulnerável ao seu fascínio.


08

Duas semanas antes de morrer, me chamou pelo nome que me dera e, no tom de quem está transmitindo a mais empolgante, festiva e surpreendente notícia de todos os tempos, disse: — "Ah, o violão-Picasso! Que limão, ou deslimão, querido giroscópio, a rinha hipotecou? Chaves e tufões? Trajetória de vitrificar marés? Não! Pétalas de escavadeira, retretas e gaviões, em síntese, recompensarão blim-blão, até que a bola ao cubo ressurja num ofidiário."

 

Expirou suavemente após tumultuada agonia em que a lembrança de Alba o martirizara como nunca se vira antes, nem mesmo nas manifestações mais dolorosas, mais cruéis. Ah, amigo maior, moço querido, quem como você em sua extraordinária maluquice? Contra os ecos de sua passagem pelo mundo, rosnam os matemáticos, debocham os computadores. O que sobrou de você em nossa memória, contudo, faz com que a verdade imutável por ambos proclamada, pareça pequenina e pobre, palavrório inútil, incapaz de mover uma fibra sequer do coração.

 

Ele se chamava o moço, o noivo, o louco — seu nome, ninguém sabia. Ela se chamava Alba, a leviana. De onde ele viera? Diplomas? Haveres? Família? Em vão, as gazeteiras da cidade mobilizaram suas antenas: quase nada se apurou. A moça o conhecera na capital, numa festa. Namoraram na cidade grande, noivando na fazenda do pai dela; pouca gente foi, só os muitíssimo chegados. Seu nome, no luxuoso convite impresso em pergaminho, era absolutamente desconhecido dos convidados."Mas ele é tão simpático:" — diziam — "tão triste!"...

E essa noiva que não vem? As tanajuras picam os leques das madames, com seus ferrões de alicate. Mas, ela chega trazida pelo som do órgão, deslumbrante e má. Ele sorri — estende-lhe a mão. Ela corre, atravessa o altar e desaparece. Lá fora, um rapaz a espera num carro puxado por dragões. Os convidados que saíram ao seu encalço, chegam a tempo de ver a nuvem de poeira levantando-se na estrada.
___________________________________________________________

E é tudo. Nenhuma lembrança a mais me ocorre, por mais que eu tente rebuscar na memória, datas, frases, referências. A chama da lamparina já se faz inútil diante dos primeiros clarões da madrugada. Os velhos ossos me doem impertinentemente. E agora que tudo está nestes papéis, sinto-me tão cansado e triste, que poderia morrer. Daqui a pouco, é dia. Mais um dia ensolarado e longo! Cada dia se torna maior que o outro; crescem mais os corredores desta casa, cresce mais a casa, a dor, a vida.

Os jornais da semana trazem impressa, preto no branco, minha oferta: quem quer comprar um velho sobrado a preço de ocasião, quem quer comprar um desespero? Ah, esta memória, esta memória que, sacudida durante toda a noite, ameaça perigosamente se acenderl Quem quer comprar um cérebro semilúcido? Estou vendendo tudo. O preço de minha vida é tão pequeno que nem dá para pensar duas vezes. Quem quer? Depois de tudo liquidado, vou sair pelo mundo. Por que? — não me lembro ainda. Mas, vou me lembrar... Procurando, eu diria.

(Ah, um facho de luz repentino iluminando-me o cérebro: o coração dispara.
— Albaaa!!!
Pára o coração..)

São Paulo, 1976


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O Filho do Eclipse

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01.

Nasci num eclipse. O parto coincidiu em hora, minuto e segundo com a escuridão. Mau sinal, mau sinal ― murmurou alguém. ― Nem filho do sol, nem da lua. Enjeitado pela luz! Boa coisa não será este menino! ― resmungou. Tinha uma verruga e se chamava Maria. Enquanto a humanidade ficava estabelecendo inter-relações entre alhos e espantalhos, meu pai foi ao cartório e me registrou: Pedro. Luís Romano era invulnerável às superstições. ― É filho do eclipse! ― rotulava-me Maria da Verruga. Ninguém, honestamente, sabia o que significava ser "filho de eclipse" e se isto pudesse trazer consequências boas ou nocivas ao recém-nascido. Mas, tinha cara de ser qualquer coisa ligada à bruxaria ― e o comentário era engolido por todas as bocas. Bocas que o cuspiam em outras bocas. Assim circulam (e se distorcem) as notícias.

― É filho do eclipse! ― o rumor percutiu nas ruas. Para uma camada ignorante da cidade de Serra do Sol, Pedro Romano era alguma coisa parecida com uma ameaça futura, um perigo nascendo, uma serpente-nenê. Minha mãe ficou apreensiva:

― Luís, o menino é filho de eclipse mesmo?
― Que eu saiba, não, Juliana. O filho é seu. Bom, é meu também... Ou, não?
― É filho do eclipse! ― respondia o eco.

O povo de Serra do Sol acompanhava curioso os primeiros dias de Pedro Romano. Indecifrável expressão alterava o rosto de quem olhava o berço da criança. Disfarçadamente, faziam-no chorar, para que pudessem se certificar de que não havia nascido com nenhum dente na garganta. E ficavam sem saber em quem acreditar: na natureza (que lhes exibia um menino perfeitamente normal) ou na superstição incutida pela repetitiva palavragem de Maria. Com indefinida opinião continuariam a olhá-lo na bebezisse, infância, adolescência.

 

02.

Luís Romano estava na oficina, quando a notícia chegou: ― Corre para a Maternidade que teu filho nasceu! Maria da Verruga soube, em sua cozinha, momentos antes que o pai. Dizem que a gordura da frigideira espirrou na cara da velha. No queixo. No centro geométrico da verruga cabeluda. Maria chiou e saiu com a invencionice. Amarrou um pano nos cabelos engordurados, agarrou a primeira pessoa que encontrou:
― Nicanor, nasceu o filho do escuro!
― Filho do que?
― Do crípis!
― Não conheço, quem é?
― Não é gente, Nicanor! É o crípis!
― Calma, dona Maria. A senhora está muito afobada, nervosa. O que é que está acontecendo?
― É filho do eclipse! Da escuridão! Reza, porque o mundo vai acabar!
Nicanor não deu confiança. Havia muito mato para arrancar do jardim público. E ele ganhava por tarefa. Maria da Verruga vai atrás da lavadeira, pessoa muito mais acessível e compreensiva.
 

― Será que tinha alguma coisa de mal se o neném fosse mesmo filho do eclipse, Luís?
― Não, Juliana. Não. Seria o mesmo que ser filho da farinheira ou da tesourinha-de-unhas.

Não estava na Maternidade na hora do parto, seu Luís? Não sabia que dona Juliana ia dar à luz naquele dia?
― Sabia. Juliana começou a sentir a dor na hora do almoço. Chamei um carro, ela ficou lá com a mãe dela e uma parteira, e vim para a oficina.
― O senhor devia ter ficado lá também, uai!
― Para que? Não sou parteiro. Está vendo esta máquina? Às cinco e meia, o Jurandir do Armazém vem buscar.
― Mas, o senhor já foi ver a criança?
― Fui. Vi. E estou de volta. O Jurandir precisa da máquina para bater a declaração do Imposto de Renda hoje, sem falta.
― Que é isso?! Primeiro filho! E esta cara de que não está acontecendo nada!
― Gostei, gostei, "seu" Benedito! Estou dando pulos de alegria! Pega dinheiro na gaveta do meio e vai buscar vinho, conhaque, champanha, o que o senhor quiser, no bar do Compadre. O senhor bebe, festeja e fica acreditando que eu gostei. Durante o tempo que a bebida estiver descendo goela abaixo, o senhor não vai poder falar nada. E eu ― já que não bebo ― vou consertando a máquina sossegado. Pega o dinheiro, vai! "Seu" Benedito foi o único que bebeu à minha saúde. Silenciosamente, atendendo à condição imposta por Luís Romano.

03.


Maria da Verruga é obstinada. Sobe e desde morros e escadas. Aperta campainhas, bate às portas, interessadíssima no desinteressante e simples nascimento de uma criança. Tão corriqueiro nascer e morrer. E como sofreu a coitada! A humanidade é alérgica, por índole, a ouvir seja lá o que for (a não ser, é claro, a própria voz). Maria sublinhava as palavras agourentas com olhares dardejantes! Morreria, se não conseguisse convencer, atrair, hipnotizar, fanatizar, comover o povão descansadão, sossegado de Serra do Sol. Suor cozinheiro perfurava seus poros, dando-lhe um aspecto de quem estava tomando chuva. A verruga, incrustada no queixo, executava acrobacias espantosas ao som da sinfonia em semifusas da língua apocalíptica.

― Agaranto pra senhora, dona Matirde: é filho do ecrípisso! A palavra ia sofrendo evoluções rápidas e gradativas na medida em que Maria escutava as pessoas a pronunciarem corretamente. Muitos anos depois, quando, vestindo uma camisolona branca, descalça, empoleirava-se em uma das árvores da praça, proclamando-se Nossa Senhora de Fátima, e ali ficava horas e horas imóvel, mãos postas, debulhando um terço, já conseguia dizer ecripse.

04.

Quem acreditou, contribuiu na difusão e na confecção da lenda (criação coletiva e mutante), acrescentando ingredientes imaginosíssimos a cada versão. Compilando-se as múltiplas e descontroladas narrativa, dá o seguinte: “Maria da Verruga estava fritando pasteis. Há o eclipse (que, indiscutivelmente existiu). Maria, apavorada, vai à janela. Olha para fora. Escuro. O fogão de lenha mantinha o ambiente iluminado. Súbito, milagre! Do fogo surge a visão de São Jorge, montado em um cavalo branco e espetando o dragão ― igualzinho nas gravuras das folhinhas. O santo lhe diz: ― “Maria, minha devota, “ispaie” no mundo a “notiça”: essa escuridão é o capeta que desceu na Terra e acaba de nascer para acabar com o mundo!”. E desapareceu. A lata caiu do alto da prateleira esparramando sal no chão. A gordura da frigideira espirrou na verruga da devota. E assim, por diante”. Quem não acreditou, se calou, se esqueceu. Um bom número de pessoas ora duvidava ora achava que “bem que está parecendo que está meio com cara de ser verdade, mesmo”.


05.


Ninguém teve coragem de aborrecer Luís Romano, homem bom e esquentado. Não mexia com ninguém para que não mexessem com ele. Pouca palavra, gênio decidido. Uma vez dera um murro na boca de um mau perdedor num jogo de palitinho. O biltre, após ofensas iniciais à pessoa de Luís (que ele ia aguentando quieto), partiu para o terreno da honra da família. Três dentes a menos na boca do pilantra. Sossego e respeito para Luís, o resto da vida.


06


Minha infância ― como era de se esperar ― correu comum. Fui um menino igual aos outros: gruo escolar, sarampo, coqueluche, caxumba, catapora, papagaio, pião, bola de gude, estilingue, peladas com bola-de-meia, álbuns de figurinhas, brigas de rua, troca-trocas, catecismo, matinês, gibis, namoradinhas. Queimado de sol, sem medo de chuva, nadava no rio, andava a cavalo, armava arapuca, pegava pardal, pegava sanhaço, brincava de pique, mocinho e bandido. Pulava muro, roubava manga, jabuticaba, atiçava marimbondo, matava sapo. Briga de turma, briga de pedra, bola de barro...

Quando, aos treze anos, minha vida sexual se despertava, Maria da Verruga, de cabeça toda branca, vivendo da caridade pública, metina na camisola de santa, ainda insistia e insistia:
― É filho do eclipse! O mundo vai acabar.

Uma quantidade razoável de cachorros magros a seguia pelas ruas. Moleques buliam com ela, lhes atiravam coisas. Ela os repreendia, corria atrás deles brandindo um bastão. Bastão em que se apoiava, de tanta velhice.

Aos catorze anos, em plena puberdade, inicia-se o crescimento de pelos branquinhos na região do sexo, no peito, nas axilas e nos braços, o que nos causa estranheza ― a mim, a meu pai e a minha mãe: família toda morena. Em pouco menos de um mês, os pelos se alastraram revestindo todo o corpo, inclusive pés, mãos e o rosto. Foi nesta ocasião que senti minha primeira cólica. Colicazinha leve. Fui ao banheiro e ... Nada.

Uma outra anomalia digna de nota, verifiquei, eu mesmo ao espelho, numa manhã: meus lábios alongavam-se, engrossavam-se, endureciam-se. À tarde, a cólica, novamente. Desta vez, consigo expelir, sem fazer muita força, um ovo ― pouco maior do que o da galinha. Comunico o fato a meus pais, que quiseram ver o ovo, pegar, cheirar, examinar e comer.
― Cozido ou frito, Luís?
― Cozido, naturalmente.
― Hum, está muito gostoso. Quer um pedaço, Pedrinho? 


07.


Chegou um tempo em que, para evitar chacotas, preferi me isolar dos amigos. Não que Luís e Juliana contassem a algum sobre o ovo. Tornara-se insustentável apresentar-me às ruas como um ser humano. Os pelos brancos eram princípio de penas, agora longas e inconfundíveis. Os lábios, definitivamente, moldaram-se num afiado bico. Acima dos braços, nos ombros, o crescimento das asas andava bem adiantado. O ovo de cada dia adquirira consistência e tamanho definidos. Apenas mãos e pés, braços e pernas, sexo e olhos, orelhas e nariz permaneciam humanos, muito embora (como já disse) envolvidos por uma penugem branca e macia.

 

Todas as noites, às escondidas, eu treinava no terreiro de casa. No dia em que consegui elevar-me a dez metros do chão, Luís Romano se entristeceu, o que acontecia raramente em sua vida. Em conversa com minha mãe, depois de ambos haverem se recolhido (do meu quarto pude ouvir, apesar de falarem baixinho) ora indagava a si mesmo, ora interrogava Juliana: como seria possível, a solução não chegava. Nem conjeturas havia. Nem hipóteses nem nada. Estavam completamente apoiados no ridículo, no absurdo, no impossível. Será que a justaposição da lua sobre o sol (e o consequente campo magnético tríplice criado: sol-lua-terra) teria emitido algum raio invisível, alguma vibração inaudível que, na hora do parto, houvesse alterado a estrutura genética do recém-nascido? Perguntas, perguntas, perguntas. Suposições. Teorias. O cérebro extenuado. A febre queimando a testa. A máquina trabalhando: a explicação? A saída? A insônia sem solução. E as perguntas.


08.

Luís Romano, logo que o dia amanheceu, foi procurar Maria da Verruga. Encontrou-a no meio da praça pública, de pé, totalmente imóvel, como uma estátua, coberta de azinhavre e cocô de passarinho. Do pescoço para baixo, havia se transformado e produzia o som de sino, se lhe batessem com uma pedra ou um pedaço de pau. Maria finalmente emudecera. O rosto, paralisado, quase metálico, morto, dissipava qualquer dúvida: o bronze trepava em seu corpo com a voracidade da lepra, a fúria da parasita. O sino chamava para a missa das sete. Era Domingo de Ramos. Seria o sino ou Maria?

 

09.


Em casa, minhas relações com Luís e Juliana eram excelentes. Minha mãe já se Habituara a me alimentar com pratos de natureza mista. Eu, da mesma forma que apreciava o alpiste ― não passava sem arroz, feijão, abobrinha, bife, batata. O mais difícil foi convencê-la a conseguir minhocas, numa ocasião em que esse desejo atávico se despertou em mim. Bem alimentado, benquisto no lar: papai e mamãe, além de amarem, me compreendiam incondicionalmente. Não me tratavam como a um aleijado ou a um marciano, mas, com naturalidade, simplicidade e carinho. Conversávamos sobre todos os assuntos com liberdade e respeito pela opinião de cada um. Líamos em voz alta, um para os outros, nos revezando. Inventávamos formas de recriar, renovar, esticar ao máximo os passatempos caseiros. Jogávamos baralho, xadrez, damas, víspora, dados. Luís nos fez meses de sinuca, de pingue-pongue. Éramos amigos, nos divertíamos, éramos felizes. Nada me faltava. Exceto a liberdade. Minhas asas longas, belas, brancas, robustas poderiam, creio eu, cruzar oceanos inteiros, atravessar continentes.

Plena Semana Santa. Quinta-feira, dia da Cerimônia do Lava-Pés. Quando eu era criança, participei. O Bispo lava os pés dos meninos, fantasiados de apóstolos. Era bom, tinha pão, doce, vinho.


10.


Na Procissão do Enterro, na Sexta-Feira da Paixão, decidi me incorporar à multidão. Misturei-me aos meninos e meninas vestidos de anjo. Não sou muito alto. Cobri o rosto com véu. Deu certo. Ninguém percebeu. Gostei tanto de sair, de estar perto do povo que (apesar dos temores e receios de Luís e Juliana) me levantei, domingo, às cinco da manhã para a Procissão da Ressurreição de Jesus. Consistia numa simples volta em torno da igreja. Toda a cidade de pé, foguetes, banda de música. Meus pais acabaram vindo. Estamos quase chegando, a procissão terminando, meu instinto de pássaro vence a vergonha e o medo. Alço voo. Leve. Livre. A estátua de Maria solta um berro gutural que empesta a praça: cheiro de alho, cebola, pimenta. um vapor amarelado sai-lhe pelos olhos, ouvidos, pela boca. A fumaça atinge os olhos de todos, provocando-lhes lágrimas ardidas. 

Luís Romano e Juliana, metidos na multidão, acenavam-me para que descesse. Eu já voava muito alto, mal os podia ver, mas, acenei-lhes também em despedida.


São Paulo, 1971

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Helena dos Espelhos e das Frutas

Adan Buzo.jpgÍndice Histórias   Índice Geral

01.
Ainda há pouco estava triste: por causa das nuvens. Não que o céu estivesse carregado para chover, desse tipo de nuvem ela até gostava. Mas da nuvem branca, esfiapada, que parecia coisas. Essa a deixava procurando um gosto perdido de tarde e de sol que há muitos anos existiu na casa de sua avó, com jasmins e magnólias no alpendre, rosas e violetas no jardim. Na horta, além de velhos troncos apodrecidos cobertos de musgo, havia uma pequena cascata e todas as frutas: jabuticaba, manga, goiaba, laranja, uva, mexerica, maracujá, abacate...


Todos esses cheiros, flores e lembranças fundiam-se numa saudade só, numa tristeza única, numa dor sem revolta: "Coisas do tempo" — pensou. Olha-se ao espelho; quase lágrimas nuns olhos onde se desenhavam as primeiras rugas. — "O tempo perfura profundos sulcos nas pessoas — murmurou. O tempo arrebenta tudo: alpendres, árvores, casas..."

Melhor descascar batatas e cebolas, esquentar o feijão do almoço, temperar o bife (João não gosta de alho), porque a noite veio; na porta, a buzina do caminhão que mal podia rodar, de tanta carga, e o carinho pontual e cheirando a suor, de João, um beijo bigodudo, voz aveludada e mansa. Ela também estava cheirando a suor, precisando de banho. Deixara o chuveiro ligado há uns quinze minutos e mexe aqui, mexe ali, a água esperando.

Mas, e o cansaço de João? a cachaça? os chinelos? Ela se ajoelha, descalça-lhe os sapatos, tira-lhe as meias e mete-lhe os chinelos velhos, gastos. A água corre. Agora sim, despe-se do largo vestido, calcinha, soutien, sandálias. Põe-se debaixo do jato forte, despencando-lhe solidamente nas costas, respingando-lhe nos volumosos e maciços peitos, escorrendo-lhe pelas nádegas agigantadas. A espuma desliza da cabeça ensaboada ao belo rosto negro. A moça a afasta dos olhos, movimento brusco. A espuma se desmancha. A água morna entorpece a tensão, dopa a angústia e Helena se dobra à fadiga e à preguiça, senta-se na banheira e deixa que o banho lhe descanse a vida.

A toalha desfraldada bebe o cansaço, pingo por pingo. O belo e bamboleante corpo absorve a essência de cedro. Perfume cálido, o vapor do banho escapa pelas frestas das persianas, fundindo-se na copa ao aroma do bife com bastante cebola, posto à mesa, e coberto com um guardanapo de papel com o escudo do Corinthians.

João pega o pão e parte-o em dois pedaços: um para comer puro, outro para passar no molhinho da carne. Mastiga. Helena não sabe explicar, mas quando João mastiga mexe com todas as fibras dos seus apetites de mulher e é um dos momentos mais nítidos em que o sente "seu homem", comendo a "comida dela"; dela, a fêmea, mulher de forno e fogão, fogo e paixão, tempero e carência, com muita carne macia e perfumada para ser devorada por ele num alucinante almoço, acafajestada fome, com o ímpeto de um garanhão a óleo diesel, dilacerando a estrada arreganhada e nua.

Mas, agora é noite. Não ficou barulho. Não sobrou remorso, dúvida nem perigo. O que era paz, em paz permaneceu. O amor, pouso delicado de ternura, estendeu-se num lençol limpo e branco, e João tomou Helena, escultura negra, cordilheira e lua. Tudo no quarto, a começar pela entrada e saída de ar e a terminar pelo pêndulo do relógio, deslizam adocicadamente, em espiral, cobrindo o silêncio e a penumbra com uma camada de eternidade.João, a princípio, navega desarvorado em vacilante travessia por declives perigosos, ardilosas veredas sem saída. Mas, o que é isso, seu moço? Cadê mestre João, o dos caminhos abertos, o do sorriso de cigano? (Quando ele vem, já de longe dá para perceber: João chegou. Quando se fala dele, fala-se com firmeza: aquele é amigo. Ele não faz isso ou aquilo para ser assim: um homem se conhece, como se conhecem os metais e as casimiras, e Helena sabe que todas as mulheres sonham ansiosamente com homens estradeiros e meninos, como o dela.)

Do que mais ela precisa? Sua horta está cheia de frutas, seu corpo está cheio de João. A ele se entrega, se abandona; nele descansa e confia, e sonha com pomares e estrelas.

02.
 
Nasce a manhã, leito de nuvem, leite no fogo, água a ferver, pão na assadeira. E o corpo de Helena, fragrância de cedro, flutua, levita, debaixo de João. O relógio bate cinco horas. Um perfume de café moído na hora derruba o odor da noite que ainda se desprende dos lençóis.

João é suave como um cisne sobre o corpo de Helena — engata a primeira. Ronca o motor. Óleo diesel empesteia a aurora. Vagarosamente se arrasta pela rua. Acena a ela, ainda perto. Ela corre e beija-lhe a boca com bigode. João na cama pousa como paina, gordo e grande como é. O vento da manhã leva para longe um cheiro de amor ainda morno. O caminhão faz uma manobra demorada. João desce pela última vez para checar água, pneus, carga, segurança. Sobe, testa freios. Murmura a Helena palavras sobre calendários, idas e voltas, um passeio de barco, um novo vestido e — quem sabe? aumento, festa, muita cerveja, feijoada (sem alho, bastante lingüiça, paio e toucinho – de pé de porco não faz questão). Quanto ao mais, não jurava nem pedia nada e, ao terceiro ronco do motor as nuvens brancas trançaram-se e escureceram-se; a atmosfera parecia dinamite prestes a explodir, perdurando essa impressão pelo dia inteiro.

03.

A noite novamente veio, mas não veio a chuva. Helena, lânguida e sonhadora acaricia suas carnes numerosas, suas coxas gordas e roliças. Chora uma lágrima delicada, que enxuga num pano de prato. Liga a televisão: ainda está muito cedo para a novela das seis, dá tempo de arrumar a cozinha, arear a panela de feijão. Põe tanto empenho nisso que em pouco tempo o fundo de metal fica tão polido quanto um espelho; minutos além, cintila como um sol, e depois, muito depois, como ela insistisse em lustrá-lo usando sucessivamente camadas de pasta para metal e aplicando-as com flanela, feltro e veludo, o objeto estilhaça-se, sem se partir, em pequeninos espelhos e estrelas, diminutos sóis reflexivos.Cozinheiramente, com gestos lentos e comuns, agindo como se nada houvesse acontecido e fosse isso mesmo o que ela esperava da panela, cutucou as brasas do fogão, atiçando-as; pendurou as cascas de laranja (quando secas são ótimas para acender o fogo), lavou a pia, enxugou os talheres, deu leite para o gato, pôs água na gaiola dos passarinhos e viu que a novela já estava começando, mas desligou o botão: hoje eu não posso.

Segurando a panela com a mão esquerda como se fosse espelho de cabo e ela se preparasse para depilar a sobrancelha, vai-se deixando embalar pela própria esperança e tudo o que ela quer saber o espelho responde. Consulta-o calmamente, sem emoções nem surpresas, porque, para experimentá-lo, só pergunta o que já sabe e lhe dá prazer.

Quando cria coragem e começa a fazer sondagens mais sérias sobre o desconhecido, os quadradinhos fragmentados da panela, como fotografias animadas, passam a revelar cenas simultâneas e independentes. Helena sente a visão embaralhada e um pouco de enjôo, mas o que vê é tão agradável, tranquilizador e ameno que ela, um tanto embriagada pelos bons presságios, se deixa seduzir pelo mistério e perde o medo de devassar o futuro. Morreria velha, compraria um carro, venderia doces para fora (teria tanto êxito que acabaria abrindo uma lojinha), adotaria uma filha — uma criança loura que viveria no mar e estudaria estrelas; plantaria árvores novas no pomar, flores novas no jardim, nos vasos, nas jardineiras. As galinhas neste ano chocariam tantos ovos, nasceriam tantos pintinhos que o dinheiro da venda daria para trocar as telas do galinheiro e fazer um muro novo no fundão da horta. Sua escola de samba não ganharia desta vez, nem no ano que vem, mas nem por isso perderia as encomendas de costura. O "Calendas" (Esporte Clube de Calendas — único time por que torcia, além da seleção, é claro) seria bicampeão da cidade e passaria à primeira divisão, disputando o campeonato com os times da capital. Faria seu santo antes das chuvas. Cairiam sem parar neste ano, mas felizmente gearia pouco e se colheria muito: muito café, muito milho, muito feijão, muito arroz e verdura. Ano de boa engorda e pouca doença para a criação, principalmente o gado.
 
A João, príncipe negro dos caminhos, ela o via em seu trono de rei, na ponte de comando, volante na mão, seguro como um jequitibá, olho de fogo dissecando a estrada noturna. Dos perigos nas viagens nunca teria nada a temer. Deveria se cuidar com um tal Galvão, um motorista novato, de Bocaxim, que andava metido em contrabando de café e estava de olho em João para o serviço. Muito jeitoso, fala de doutor, cheio de agradecimentos, gentilezas, sorrisos: "esta é minha, deixa que eu pago", nunca deixava ninguém pagar; quando não estavam olhando, ia até o caixa e acertava tudo: altas rodadas de cachaça, cerveja, tira-gosto de pernil...

Os colegas, motoristas de caminhão, gente simples, companheira, foram facilmente conquistados pelo sujeito. Era uma festa quando ele chegava ao boteco à beira da estrada, ponto de encontro e refeições, papo e cachaça, pagando tudo e contando piada. Piada! Galvão era a piada. Vestia, corporificava, suava, sofria com ela. Até rebentar! Aí, o que arrebentava era o mundo! — e enquanto todos riam, Galvão mandava outra.
 
No quadrinho seguinte, Helena viu João chegar ao botequim. Notou a gentileza em excesso de Galvão, enchendo copos, puxando cadeiras. Nem precisou de espelho, enxergou todo o perigo, correu ao quarto de costura, trouxe pano, linha e agulha. O mais rápido que podia, com muito medo de que não desse tempo, ia costurando e costurando, não desgrudando o olho do espelho.Quando o boneco ficou pronto (parecidíssimo com Galvão), este, há muito tempo já tinha dado um jeitinho de levar João para um canto, conversa ferrada. Já estava falando em dinheiro: 50% para cada um, uma fortuna por viagem! 25% antes, 25 depois. João bebia, bebia.

04.

Em cera, Helena modelou um revólver e um facão. Recitava orações perigosíssimas, reza brava de meter medo em feiticeiro calejado, de cabeça branca e muito saber, acostumado ao pior. O que ela estava esperando, aconteceu. João pousou vagarosamente seu copo na mesa, deu um chute na cadeira que estava na frente e arrancou a faca.(Helena reza a faca de cera e envolve sua ponta em algodão, para que não mate.) De um pulo, parte para cima de Galvão, que, também homem de briga, estando desarmado de faca, puxa o revólver e atira. A bala (coisa de Helena) explode sem sair do cano. João, com um chute no antebraço do sacana manda-lhe a arma longe, e bufando de raiva acerta-lhe uma porrada na boca do estômago. Daí começa uma enfiada de murros, cabeçadas, pontapés; que só terminam quando a raiva de João vai serenando.

Ninguém no bar quis interferir, de forma que ele pôde bater à vontade. Enquanto João dava pancada, Helena protegia as partes mais frágeis do boneco (olhos, clavícula, sexo, costelas, coração, vesícula, bacia, pescoço) com pequenas cruzes de carvão-de-exu: que seu homem batesse bastante nas outras partes, mas que não fosse parar na cadeia por causa de um filho-da-puta daqueles.
O assunto não mereceu nem falação, nem ação: todo mundo já sabia das manobras do pilantra — o que não se sabe nas estradas? Todo mundo de acordo quanto à sua ordinarice. João pediu esparadrapo e iodo no bar. Entregou pessoalmente a Galvão e disse: — Faz os curativos e desaparece da estrada e do mundo. Não te entrego à polícia porque não gosto de polícia. Mas, te guarda se eu te vejo outra vez!

05.

Registrado nos espelhinhos de João, podia-se ainda ver: algumas gripes, outras tantas ressacas, um tio que vai pedir dinheiro emprestado (hábito antigo) e não vai pagar; em compensação ensinará a João o que ele sempre teve loucura para aprender: clarineta, e João se sairá tão bem que tocará na banda. Aposentadoria no tempo certo, amigos verdadeiros, saúde de ferro, cabeça branca, total lucidez e agilidade nos membros. Lucro em compra e venda de imóveis: terrenos e casas de aluguel. Lucro em venda de legumes e frutas. Vitórias brilhantes no joguinho de damas todas as tardes, na farmácia do Fabiano. Sua escola de samba (rival da de Helena) venceria neste e no ano que vem. Seu time de futebol enquanto ele vivesse não ganharia o campeonato.

Agora, ela ia dormir, não queria ver mais nada, não. De si, já sabia tudo. De João, soube a tempo e a hora de ajudar, graças a Deus. O futuro seria tão manso... De espelho, não carecia mais, não. Do resto ela sabia: não haveria de conhecer seu homem, então? Violão, cachaça, raparigas. Mas, não se amofinava, entendia. Cachaça, ele bebia bastante, mas do jeito bom: sem cambalear, sem enrolar a língua; contava mentiras aceitáveis, não perdia o bom humor... E à noite, ele vinha e se entregava apaixonado, desprotegido. Violão, ela adorava. Voz de homem, enchia a casa — músicas de Noel Rosa, de Dorival Caymmi. As putas? Não se importava, não. Homem precisa variar, senão enferruja. De amor ela andava tão rica, bem amada, bem comida. As putas, ele não amava, não. Gostava delas, era amigo: de vez em quando, passava no açougue, comprava uma quantidade enorme de filé, ou frango, ou lombo de porco, levava para a casa da Gaby e mandava assar no espeto, no forno, fazer bifes. Quando não era isso, era peixe. Nesses dias, convidava os amigos: Tuí, Carlinhos, Humberto, Otacílio, Moreira, Jean, Sílvio Brito, Célio; mandava "fechar a casa" e ficavam bebendo, comendo e cantando até o último dormir. Para Helena, tudo bem. Uma vez, faz muito tempo, sugerira:
— Traz a turma para casa, amor.
—Tocar, cantar, comer e beber com os amigos só tem graça num lugar, meu bem: casa de rapariga. O que chega mais perto é botequim!... Depois destas "lavagens de alma na casa da Gaby", como ele dizia, dava a Helena durante muitos dias, a impressão de que haviam retornado aos primeiros tempos de casamento: arte e magia no tato, fogo e fartura no amor.

06.

No dia seguinte, a panela voltou bem cedo para o fogão. João chegara cansado e queria dormir até o sono acabar. "Quando ele acordar, vou pedir pra consertar a armação das uvas, apodrecida pelo tempo" — pensou Helena. Havia muito o que se fazer na horta e na vida. O sol de setembro brilhava com energia branda. O ar puro da cidadezinha, o silêncio das ruas com tão poucos automóveis, o perfume das flores e das frutas enchiam Helena de alegria. A vida era doce e calma como maracujá. As galinhas já haviam enchido de ovos os ninhos, era só recolher. Muita jabuticaba, também, para apanhar, senão vai-se perder, de tão madura! Logo, logo, João se levantaria, contaria a briga, tomaria banho, daria uma volta pela cidade, beberia uma pinguinha, viria almoçar. Depois, arrumaria a horta, apanharia fruta, e sei lá o que mais... Podia ir à beira do rio pescar, que não viajava hoje; jogar dama na farmácia, sinuquinha no boteco, dominó com o padre Anthero. Fazer o que der na telha. Podia tomar Helena, levar Helena ao comércio, comprar para ela um vestido, uma sandália, um sapato. Levá-la a andar a pé pela estrada, pelo mato, andar de barco no rio...

07.

Muitos anos depois, nasceu uma menina loura entre as macieiras e as uvas. Levada por seus próprios pés, amava as estrelas e ficava o dia inteiro na areia, à beira-mar. João tocava clarineta na "Lyra de Calendas", prosperava e vencia na dama e no amor. Helena ainda há pouco estava triste, por causa das nuvens. De longe em longe ficava assim, perdida num tempo de nevoeiro, num passado amarelecido em que se lembrava de um alpendre com jasmins e magnólias, rosas e violetas no jardim. Nessas horas, ficava tão triste a ponto de não aguentar; triste como valsa, violino; triste como um domingo. Tão triste, que ninguém chegava perto; nem a filha (que se chamava Helena), nem o cachorro tão agarrado a ela. Até os espelhos se esquivavam, recusavam-se a refletir tanta amargura: Helena, há alguns anos, quisera ver a imagem de sua dor no espelhinho do banheiro; o espelho a repeliu, não devolveu seu reflexo. Em sua face de gelo reproduzia tudo em volta, menos o rosto de Helena. E não lhe deu confiança enquanto ela não sorriu.
De repente, João aparece como um sonho, envolve-a como brisa. Seu amor derrama-se sobre ela com a doçura da tarde que cai. Como água de chuva miúda cobrindo pétalas e folhas, insinua-se nela, esparrama-se nela como o sol que se alastra no horizonte, quando a noite vem. Ela, então, olha para o jardim, para o pomar e vê as espigas de milho amarelinhas (quase na hora de colher), o canteiro de gerânios, as petulantes dálias, as abóboras no chão estalando de maduras; e lá no fundão perto do muro, as roseiras, as orquídeas (sempre tão enjoadinhas...), os cravos, as madressilvas. A vida circulava grandiosa, exuberante e livre nos canteiros e nas árvores, nos ares e sobre a terra umedecida de chuva, debaixo do chão, nas pocinhas d'água, nos buraquinhos dos troncos e do solo, sob as pedras e gravetos. A horta, uma galáxia superpovoada de vidinhas irrequietas e coradas. As abelhas e os passarinhos não param um minuto. É o vôo, o canto, a colmeia, o mel, o pólen, os filhotes, a companheira, é o ninho. É a festa da fecundidade, o sol quente, o dia claro, o cheiro da natureza, o cheiro de chuva velha. É a força imensa da vida se opondo aos males dos homens, tão pequenos, tão solúveis que quase não existem.
No galinheiro, o ruído de minúsculos biquinhos arranhando a casca de ovos, avisa Helena que uma ninhada de bebês vai chegar daqui a pouco.
— Que bom! Os pintinhos estão quase nascendo. É melhor eu moer milho e deixar canjiquinha perto da bacia.

Olha para João: olhos banhados de ternura (e a ternura é tanta que Helena fica arrepiada e chora). Olha para João: manso como a noite, corpo flexível de canavial, coração sem peso, mãos que deslizam macias, sem pressa, como carro de boi. Olha para João: calmo como o mormaço da tarde, carapinha de veludo, voz de ribeirão.
Aí as comportas da emoção se fecham, pequenos receios se dissipam imperceptivelmente como os soluços, e Helena, ainda com lágrimas nos olhos, aperta, aperta muito o corpo musculoso do seu homem e se abre inteira como terra fofa, e sorri inteira, porque acaba de tomar posse definitiva de sua felicidade, tanta e tão perfeita que dá tontura só de pensar. E se despe para João, príncipe negro dos caminhos, que a conduz, suave como um cisne, pelas estradas da noite. O espelho da penteadeira espia impassível pelas frestas da penumbra. No quarto ao lado, Helena do Mar, a menina, dorme de janela aberta – seu corpo cheio de estrelas. Na cama, o poderoso amor de Helena e João (que jamais frutificara em filhos de sua carne) desprende-se de seus corpos, irradia-se em ondas espirais, atravessa as paredes da casa, é captado pela sensibilidade das flores, dos legumes e das frutas, penetra em suas raízes, e como seiva incrivelmente rica, faz com que eles se tornem belos, sadios e graúdos como nunca se vira antes na face da terra. O extraordinário fluido de fertilidade é absorvido por todas as criaturas vivas, insetos, animais, pessoas; primeiro, pelos que estão mais próximos, depois por toda a cidade, até se perder já sem força nos pastos das últimas fazendas.
 
São Paulo, 24 de julho de 1976


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Aureste I e Último, Supremo Leitor das Galáxias

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01.
O eminente crítico Célio Segundo Salles insinuou com a sutileza que lhe é peculiar, que "o único caminho a que leva o aurestismo é o da ignorância completa a que estarão sujeitos os seus eventuais seguidores".


Dados estatísticos da Unesco comprovam que o aurestismo contamina muito rapidamente a população mundial. Como a doutrina se baseia — a priori — na atividade filosófica de a pessoa só afirmar o que os outros dizem, chegará um tempo em que ninguém afirmará mais nada. Isto acontecerá dentro de pouco tempo, porque o aurestismo (ou dizemquismo) é um eloquente e total desencorajamento à originalidade. E só poderá sobreviver enquanto alguém disser alguma coisa original.

Lavoisier será impiedosamente desmentido, porque nada se perderá a partir do aurestismo. Mas, também nada se criará. E muito menos
se transformará.

As previsões do professor Célio Segundo Salles coincidem com a de todos os demais pensadores da atualidade: são unânimes em concluir que, chegará um tempo em que ninguém fará, dirá ou negará qualquer coisa. Imobilidade total. Todos se limitarão a fazer, declarar, ou contar o que os outros já fizeram, ou disseram. Isso, enquanto houver recalcitrantes.

Nesse dia
provavelmente os seguidores do aurestismo portarão cimitarras de raio laser, e cercarão os infieis nas esquinas sombrias, repetindo a ameaça eterna: o aurestismo, ou a vida? É bem verdade que, alguns velhacos, acrescentarão uma terceira afirmativa: a bolsa, a vida, ou o aurestismo. Esses ― mais cedo ou mais tarde ― terão um fim trágico.

A filosofia aurestiana nasceu morta. Ao mesmo tempo em que proíbe a originalidade, vive e usufrui dela, como o carrapato vive do boi. É preciso alguém fazer, ou dizer alguma coisa original, para os sectários do dizemquismo disporem de assunto para sobreviverem.

Haverá fogueiras inquisitoriais que Aureste mandará confeccionar, numa homenagem devota a Inácio de Loyola, um de seus ídolos mais queridos. Os idólatras livre-pensadores se transformarão em cinza e fumaça. Fumo este que Aureste confundirá com o incenso que lhe foi negado pelo destino padrasto que (contrariando seus planos mais ardentes) não lhe deu a cadeira papal, tão voluptuosamente ambicionada.

Os que fazem oposição à doutrina de Aureste, o Citador, temem-no profundamente. Principalmente, os que não ignoram a vocação irrefreável que esse filósofo tem para o governo ditatorial. Foi embalado por exaltados hinos fascistas, cantados por seu pai, quando era bebê. Seus primeiros brinquedos foram um cata-vento em forma de cruz suástica e um Mussolininho de borracha, estilo joão-teimoso, que Aurestinho, no seu linguajar de criança nova, chamava de Dutinho ― diminutivo de Duce: ― Oh, papá, cadê meu Dutinho? Eu não consigo dormir sem meu Dutinho!
E o papá, orgulhoso, levantava-se, altas horas da noite, para pegar o Dutinho que, não raras vezes, caía no urinol.
— Oh, meu filhinho, o papá também gosta muito de Dutinho! Só que o do papá, é Dutão! Aurestinho, no futuro, fará maravilhas na indústria do urinol.

Por essas e por outras, é que nos meios intelectuais mais esclarecidos, o nome do filósofo dizemquista era pronunciado com temor, que se transformou em terror, quando foi publicada a conversão do presidente da maior potência do mundo à nova doutrina. À guisa de batismo, o chefe de estado — insuflado por Aureste — proibiu a publicação de novos livros, seguindo-se a queima, em auto-de-fé, dos que foram publicados depois do dia 7 de junho de 1948, data de nascimento do filósofo.

 

Iniciou–se uma campanha publicitária, apoiada pelas emissoras de rádio e televisão, cuja chamada era: "DENUNCIE UM ESCRITOR E GANHE UM BARCO A MOTOR". Não havia julgamento. Eram sumariamente executados.

— Não havendo julgamento — disse Aureste — o terror inspirado será muito maior. O povo ficará mais depressa desencorajado a pecar. Aureste sempre gostou do termo pecar e o suava constantemente.

O Supremo Leitor buscará, ainda, inspiração em outro de seus super-heróis amados, o apetitoso Hitler ― personagem assíduo de seus sonhos de infância, na época em que os outros meninos sonhavam com Zorro, Robin Hood, Batman, etc.. Ativado por essa inspiração, o filósofo ordenará o ressurgimento dos campos de concentração em todos os quadrantes do planeta, onde sertão efetuadas lavagens cerebrais em massa nos "cães asquerosos" que, porventura, cometerem o deslize de descobrir as coisas por si próprios, em vez de aprendê-las nas escolas, colégios e universidades.

As casas serão meticulosamente visitadas pela milícia dizemquista e — se por acaso — não encontrarem um diploma correspondente a cada membro da família, serão arrasadas e salgadas, para que nunca mais no chão se edifiquem. Não serão perdoados hóspedes e empregadas domésticas.

O menino ou a menina de quatro anos que não tiverem o certificado do Curso Maternal, serão imediatamente jogados aos gatinhos selvagens de Sumatra. Os de cinco anos completos e sem o devido cartucho do Jardim da Infância, serão destinados às serpentes hindus. Para os de seis, Aureste — que dará a si mesmo o título de "Supremo Leitor" — decretou obrigatória a posse do Diploma de Pré-primário. Caso contrário serão emparedados vivos na Praça da Carteirinha de Estudante onde, à custa dessas crianças desobedientes, está se erguendo um monumento ao Banco Escolar, inspirado na Torre de Babel. E como a safra deste ano foi boa, o obelisco já mede quatrocentos e trinta e oito quilômetros de altura, por dois quilômetros quadrados de espessura, e o mesmo tanto de comprimento. Ai daquele que aos dez anos não houver concluído o primário: degolação com cepo, machado e verdugo. Aureste sempre nutriu romântica atração pelas coisas e hábitos do passado.

O Supremo Leitor — num requintado gesto de humorismo — materializará a expressão "bomba". Submeterá os alunos reprovados a uma morte correspondente ao crime: mandará amarrá-los a uma bomba-relógio. Vamos dar um exemplo de como funciona esse mecanismo: faltou a um aluno seis pontos em geografia, sete em história e três em matemática para que passasse de ano. Total: dezesseis pontos. Os ponteiros do relógio da bomba serão acertados para dezesseis horas antes de acionarem o dispositivo da explosão. Aureste se orgulha de haver copiado este processo. E dizem que até afirmou, certa vez, que leu em algum lugar de que não se recorda, que quanto mais demora a morte, mais sofre o condenado. Portanto, dizem que ele considera este sistema de execução o mais perfeito e justo jamais copiado por cérebro humano, uma vez que o castigo corresponde exatamente às dimensões da culpa. Dizem que ele até acrescentou, sorrindo e balançando as bochechas gorduchas: — Eles que tratem de tomar bomba só por meio ponto! Dizem que, ao ouvirem isso, seus generais-catedráticos riram bastante!

Aos que transgredirem sua lei que proíbe aos alunos tomarem segunda época, manda açoitar em praça pública. O pelourinho escolhido situa-se na famigerada Praça das Aspas. Neste caso, os pontos faltantes são multiplicados por dez, e o total, transubstanciado em chicotadas, com chibatas de arame farpado. O Serviço Militar foi abolido. Em seu lugar, o cidadão ficará legalizado com a nação ao apresentar três diplomas universitários. Dizem que Aureste pretende duplicar este número.

Aureste tem um secretário particular, o popular João da Quita. Dizem que o motivo da escolha foi o de que João da Quita, apesar de não ter nada na vista, apareceu na presença do Paladino da Escola, usando óculos de lentes grossíssimas que se projetavam como dois telescópios, medindo os canos quarenta e dois centímetros, aproximadamente. Ajoelhado no chão da sala do trono, João da Quita em meio a choramingos e soluços disse a Aureste, que ficou naquele estado de tanto ler. O Filósofo-Leitor se comoveu e condecorou o pobrezinho com a Ordem do "É Preciso Ler".

A Ordem do "É Preciso Ler" foi inspirada no Precisismo. Aureste mandou matar Joanny e acrescentou ao "É Preciso" o verbo "Ler". Dizem que isso se sucedeu em 2989, ano que ficou famoso porque Aureste mandou matar todas as mulheres bonitas do mundo. — Minha intenção era de matar todas. Mas — e coçava as bochechas gorduchinhas — o que seria da procriação, não é mesmo?

Aureste será muito injustiçado pela posteridade. Dirão que foi cruel. Taxá-lo-ão de tirano, monstro. A humanidade é ingrata. As palavras que Shakespeare colocou na boca de Marco Antônio não perecerão jamais: "o mal que os homens fazem vive depois deles. O bem é quase sempre enterrado com seus ossos". Se assim o foi com César e com tantos outros, que o seja também com Aureste. Os historiadores se esquecerão de exaltar o impulso velocíssimo que o Supremo Leitor imprimiu às ciências, à tecnologia, à pedagogia, etc. Impulso este estimulado por ameaças terríveis! Os feitores munidos de chicotes eletrificados vigiavam as pesquisas dos cientistas nos laboratórios, e espécimes maravilhosos nasciam em tubos de ensaio, a cada minuto. "Se o sábio tem sono, se no chão resvala, ouvem-se gritos, o chicote estala. E inventa mais e mais." Ao cabo de três meses, as maiores sumidades do mundo terminaram por sucumbir, pela falta de sono, ou pelo excesso de anfetamina que os feitores injetavam em suas veias para ativar-lhes a mente e prolongar-lhes a vigília. Dizem que Aureste chorou uma lágrima sentida ao saber da morte, e comentou: — "Mártires da Ciência! Oh, ciência ingrata, que mata seus filhos mais dedicados!".

Morreram, mas cumpriram sua missão: criaram uma espécie de ácido que emudece para sempre quem o toma. Criaram um refrigerante que se chama Refrigerante Biblioteca Particular Dante Alighieri. Durante três dias e três noites, foi distribuído gratuitamente em todas as casas do mundo. Aureste providenciou propaganda superior à da Coca Cola, coisa aliás, desnecessária, porque quando os nonilhões de cartazes ficaram prontos não havia uma pessoa sequer sobre a face da terra que não estivesse viciada na bebida. A sofreguidão foi a maior de que já se teve notícia. Desnecessária também foi a trabalheira dos químicos ao criarem um sabor irresistível de creme-de-milho-de-chocolate-levemente-gasoso. A calculada dose de cocaína adicionada ao refresco, garantiu o sucesso. E de uma forma tal, que o povo só chegou mesmo a prestar atenção no sabor, nos primeiros goles, e depois nunca mais teve tempo para pensar nisso.


O espírito clarividente de Aureste, orientado pelo seu descortino comercial invejável, havia acertado mais uma vez, quando, meses antes do lançamento do Refrigerante B.P.D.A, decidiu, para espanto de todos, comprar todas as fábricas de urinol do mundo. Mais uma vez foram utilizados os bons serviços dos feitores para incentivar os operários na confecção de penicos. João da Quita, que puxava o saco de Aureste, não digo em pensamento, mas até em sonho, pela primeira vez ousou pensar que seu amo e senhor enlouquecera. Mas, foi o primeiro a beijar as mãos de Sua Majestade Escolal, quando presenciou através de uma janela do Palácio do Magistério, que a multidão transeunte havia incorporado o penico à coleção de objetos indispensáveis e inseparáveis.

As senhoras, respeitosamente, carregavam-no como se fosse uma bolsa. Os homens de negócios seguravam-no impavidamente com a mesma mão que sempre transportou a pasta de papeis. O acessório conferiu às mocinhas feias (as bonitas já não existiam) um charme especialíssimo e um tanto quanto erótico. As crianças, as velhas, os velhos e os rapazes não saíam de casa sem o apêndice, que nos tempos idos fora chamado de vaso noturno, algo ancestralmente desprezível, escondidinho debaixo da cama, sempre com vergonha. Agora, não! Tornara-se de primeira necessidade. E a vergonha foi se transformando gradativamente em moda. Frases nunca dantes pronunciadas entraram em uso corrente. Era muito comum se ouvir:
— Lúcia, te telefonei para perguntar se esqueci o meu peniquinho em tua casa.
Ou, então:
— Comprei ontem na butique da Milikas um penico de porcelana chinesa que é um sonho! Ih, nem adianta ir lá: é antiguidade, querida. Pertenceu à Marquesa de Castilha.

No princípio, todos procuravam carregá-lo escondido, principalmente as pessoas gradas. Mas, depois que o cantor e compositor Sílvio Brito o expôs abertamente num programa de televisão, a juventude passou a imitá-lo para escandalizar os mais velhos, que acabaram aderindo também, e até o transformaram em objeto de ostentação. Dizem que o governador dos Estados Lidos da América do Norte gastou boa parte do orçamento do país, com a compra de um urinol de ouro para a esposa, por ocasião das bodas do mesmo metal. E assim foram surgindo vasos de todos os tipos, em todas as cores; de aço inoxidável, de acrílico, de plástico. Os homens geralmente preferiam os marrons ou pretos. E dizem mesmo que, se um rapaz ou até mesmo um senhor de idade madura aparecesse com outra cor, os comentários não eram muito lisonjeiros.

Todo o dinheiro da população mundial ia velozmente sendo transferido para os cofres do governo central e único de Aureste, o Citador. As filas nos bares se intensificaram tanto que, nem com a improvisação de milhares de balcões nas casas residenciais, deixaram de existir. Nem Aureste poderia prever esse resultado massacrante. O voluntário que sob suas ordens provou o refrigerante para testá-lo, não resistiu e teve que tomar mais cinco garrafas naquele dia. Aureste entusiasmadíssimo resolveu, num arroubo de gratidão, procurar os cientistas para condecorá-los pessoalmente. Encontrou-os agonizantes. Foi aí então que, com um fiapo de voz, o químico-chefe revelou, para surpresa de Aureste, que o sabor creme-de-milho-de-chocolate-levemente-gasoso, além de delicioso, possuía a virtude de provocar uma sede insaciável.

O consumo era tal que Aureste teve que mobilizar seus feitores para persuadirem os fabricantes do líquido a por sua vez fazerem o sacrificiozinho patriótico de não dormirem. Nessa época foi construída uma imensa piscina para comportar a beberagem. As garrafas sofriam sucessivas transformações. Quanto atingiram o tamanho de um garrafão comum de cinco litros, Aureste, segundo dizem, verificou que o povo não tinha mais dinheiro. Que o povo bebia ininterruptamente. Pelo gargalo mesmo, para não perder tempo em encher o copo. Dizem que nesse mesmo dia, chegou um relatório mundial de sua indústria de urinois, revelando que ninguém mais estava comprando e estavam mijando na rua, mesmo, porque a urina saía simultaneamente ao ato de beber. E como todo mundo tinha que segurar o garrafão com as duas mãos, era humanamente impossível o uso do receptáculo. João da Quita foi o único que se escandalizou com o fato de todos terem dispensado completamente o uso das roupas, como também não percebeu que ele era o único que mijava nas calças, porque tinha um pudor de freira.

O fedor da urina tornou-se insuportável em Palácio, mas só chegou realmente ao nariz de Aureste no dia em que ele constatou que o povo não tinha mais dinheiro e que já era tempo de adicionar à fórmula o ingrediente que provocava a mudez. Conseguido o resultado, mandou suspender a produção bruscamente. E o mundo se debatia nas labaredas e brasas da vontade alucinada de beber o refrigerante, quando foi promulgado o decreto de que as férias haviam acabado e que todos os habitantes do mundo — viciados, mudos, pelados e pobres — deveriam imediatamente voltar aos estudos e ao trabalho.

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João da Quita levou a bajulação longe demais. E foi o único também que teve coragem de fazê-lo durante os noventa e dois anos que durou a leitura de Aureste I e último, Supremo Leitor das Galáxias. Morreu empalado na pena de uma caneta-tinteiro gigantesca. Crime: ousou perguntar a Aureste porque ele se intitulava Supremo Leitor, uma vez que pela lógica dizemquista, cabia-lhe muito melhor o título de Ditador-Que. 

ILUSTRAÇÃO
Aloísio Abreu
 
Varginha, 1971


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Calendas, Nome de Cidade

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Moro há três semanas no melhor hotel, assim considerado pela opinião geral (do dono e da mulher), não partilhada pela mulher e o dono do outro hotel que existe. Mas, não tenho por que me queixar. Sou um homem simples, que prefere a paz de um modesto lar, ao luxo e à ostentação do mundo. Relativamente moço, imensamente livre, só me casarei se a mulher — que, até agora não conheci — preencher todos os modelos que preestabeleci, com o auxílio da filosofia de Platão e da matemática pura, ciência que fascina e recreia minhas horas de lazer. Curioso: é a primeira vez que digo "minhas horas de lazer"...

A tal mulher terá que ser belissimamente linda, porque sou um artista, um sacerdote da estética, e poucos eu conheço com sensibilidade tão desenvolvida quanto a que possuo: capaz de penetrar no recôndito, no âmago, na essência da beleza das coisas.

A comida deste hotel é um atentado contra a estética! Louça de mau gosto, talheres de metal plebeu, toalhas lamentáveis! E quando se vê a comida nas bandejas, o impacto provocado pela ausência absoluta de beleza é tanto que se perde a fome. Bifes feiíssimos, arroz desbotado, gordura minando das batatas fritas, ora murchas, ora estorricadas. Se não repararmos, o apetite se esquece. O que os olhos não vêem... Entretanto, mal o paladar se dá conta do que terá que aceitar, protesta com náuseas sucessivas — que eu posso traduzir por acusações violentíssimas à consciência profissional de quem cozinhou aquela infâmia, tempero abjeto, ingredientes nocivos e referências análogas.

Findo o veemente protesto do meu espírito ante o triste espetáculo culinário oferecido aos meus sentidos: visão e paladar (sem me referir ao olfato que aderiu prontamente à causa comum), serenam-se os ânimos porque — atenção! — entra em cena meu ascetismo bovino, meu conformismo oriental: uma facilidade nata de adaptação ao meio ambiente e nos altos e baixos circunstanciais a que estou sujeito como ser humano. Eficientemente, os pratos se esvaziam; mudam de endereço os comestíveis grosseiros, transmigram-se para o estômago que, embora de mau grado, lhes concede asilo. Apalpo a barriga cheia, satisfeito, feliz.

É verdade que o colchão é duro. Poucos cobertores, não escoram o frio. O barulho da rua dificulta o sono. Todos os hóspedes ao entrar e sair têm obrigatoriamente que passar pela minha porta e pisar numa tábua solta que por acaso vai dar bem embaixo da cama. Os sapatos no assoalho provocam um ruído tal que, ampliado pelas condições acústicas do amplo corredor soam aos meus ouvidos como martelo na bigorna. Raro o dia em que ninguém se embriaga; há sempre um ébrio entrando aos trancos e tropeções até acordar o porteiro que, quase sempre bêbado também, faz valer sua autoridade trocando insultos e palavrões aos berros com o transgressor do silêncio. O dono e a dona do hotel engalfinham-se pelos mínimos motivos em conflitos corporais. Sem contar os filhotes de cachorros e gatos da vizinhança, que escolhem a minha janela para os diálogos noturnos.

De manhã, às oito horas, há ensaio da fanfarra no colégio ao lado. A banda existe há um mês, apenas, de forma que os meninos estão começando a aprender a tocar os tarois, tambores, surdos, trombetas, trompas, tubas, clarins...

Pois nada disso me afeta o equilíbrio emocional. Impassível permaneço. Me concentro e duro com o que der e vier. Meu controle é perfeito. Não sou um super-humano. Ioga, não pratiquei. Não me esforcei para nada. Nasci assim, nada mais. Confesso que as pulgas quando eram muitas de vez em quando chegaram a me irritar um pouco. Como eu reclamei e ninguém tomou providência, acabei me acostumando, também.

Nas três semanas em que moro em Calendas tenho me dedicado à sociologia e à psicologia, estudadas por intermédio da observação e análise. Pretendo escrever um livro — o primeiro, aliás — e escolhi Calendas. Aleatoriamente. Tanto faz. As cidades se parecem profundamente umas com as outras. Os apetites humanos, idem, e o mesmo ocorre com as necessidades, inclusive a minha de, daqui a 15 minutos tomar o primeiro ônibus para a capital. Nada me prende mais a Calendas. Dissequei a vida deste pessoal sem dó nem piedade. Material, eu tenho para três volumes. Ou mais.

O que eu vi aqui, já nasci sabendo. Calendas confirmou e nomeou os bois. Ofereceu cobaias que reafirmaram a incrível semelhança entre um homem e outro.

Quinze para as quatro. Eu abro esta janela e espero. Não estou vendo, mas sei que dentro do bar da esquina há um homem tomando café. É um alto funcionário. Daqui a dois minutos vai sair. Saiu — eu não disse? No fundo, um bom sujeito, mas a hipocrisia e a vaidade o derrotaram: impediram-no de fazer uma carreira muitíssimo mais brilhante. Aquela pose toda é artificial. Senta-se, às missas, aonde seja visto, e não contente com isso sobrepõe a todas sua voz de barítono, nas orações conjuntas. É leão nas polêmicas. Pavão, nos coqueteis,. Assume quando quer a pele da raposa, aliada à manha dos felinos. Inteligente e instruído, não se muda para uma capital para evitar que o brilho de centenas de astros da metrópole ofusquem o seu, que aqui é solitário e único, como um diamante num anel. Chegará em casa daqui a sete minutos, abrirá a porta com a chave que tem no bolso da calça, irá ao banheiro, lavará meticulosamente os dedos e, finalmente, pendurará o paletó e a pose, até amanhã, quando começará tudo de novo. Ah, a propósito: este fulano é o juiz de direito e seu nome é Alberto Lopes Medina, Dr. Medina.

O prefeito Dr. José Fulgêncio da Costa é um matusalém amnésico. Sua memória se chama Maria Teresa. É a secretária. Não faz nada sem ela. De vez em quando, se esquece de que a secretária existe e vê-se em mato sem cachorro, até receber socorro, como, por exemplo, ela, espontaneamente, aparecer e lhe perguntar se deseja alguma coisa, “estranho o senhor não ter me chamado, ainda, hoje”.

Minhas malas estão prontas. Pago o hotel, saio, atravesso a rua rumo à estação rodoviária, que fica a três quarteirões. Passo rente à igreja, à casa paroquial. O vigário aparece à porta da sacristia para atender duas beatas.O vigário é milagroso. Cativa homens e mulheres. Insinua-se por entre as famílias (ricas) e consegue a presença quase maciça das pessoas (ricas) na igreja. Muitas ovelhas (ricas) que andavam há um bom tempo afastadas do rebanho, voltam graças a ele. Um bom papo, belo tipo de homem, é uma pessoa inteligentíssima. Seus olhos possuem brilho carismático. Seu livro de cabeceira — “O Príncipe” de Maquiavel — é enriquecido por comentários de Napoleão Bonaparte, em notas de rodapé. Todos os anos troca o carro. Anda muito bem vestido.

Bancários, comerciantes, profissionais liberais, funcionários e operários também moram na cidade. Acordam, trabalham, comem, bebem, procriam, telenoveleam e dormem.

O cinema é sinônimo de diversão obrigatória a todos os que se prezam. É de bom tom frequenta-lo aos domingos, na sessão noturna das oito e meia, e de mau tom na sessão das seis e vinte. Há o cinema dos brancos e o cinema dos pretos — ou não seria melhor dizer: há o cinema dos ricos e o cinema dos pobres? Tanto faz. A pessoa, em Calendas, muda de cor conforme a posição social alcançada. Preto rico é branco. Branco pobre, preto. Na rua de cima passeiam os brancos, há o citado cinema dos brancos, o clube dos brancos, os bares dos brancos. Na de baixo, a mesma coisa para os pretos e brancos pobres.

Não importa qual seja a xaropada impingida: aos domingos, como disse, todos vão ao cinema. Saem com ar de triunfo total! Homens, cara de boi. Mulheres, olhar de vaca. Os rapazes e as mocinhas de boa família vão para as boates tomar chope ou cuba-libre (moderadamente) e dançar (separados) até uma determinada hora, porque os papais e as mamães não deixam que as menininhas — de uma vez por todas — durmam em paz com os menininhos, e supõe que os ponteiros do relógio influam decisivamente no comportamento sexual das filhas. Se estas ficarem mais meia hora — mais uma hora, digamos — fora de casa, além da hora marcada, é sinal indiscutível de que acabam de ser defloradas pelos namoradinhos e é um deus-nos-acuda, a terra treme, o mundo vem abaixo. As que realmente o são perdem o sossego para sempre: ou se casam obrigadas, ou são levadas a um cirurgião da capital para uma sigilosa restauração.

Aos domingos, feriados, dias santos e sábados, o movimento nas ruas é infernal. Uma multidão desce enquanto a outra sobe. Em seguida, a que desceu, sobe e a que subiu, desce. Todos procuram. Os que sabem o que procuram, não acham. Os que não sabem, se por acaso acharem não resolve nada. E os que sequer sabiam que estavam procurando?

Por ocasião de alguma festividade cívica ou religiosa, não fica viva alma em casa. Saem às ruas, sorridentes, enquanto esperam a festa. A festa nunca aparece. Bem que procuram desesperadamente por ela. Entram na igreja. Dentro da igreja, não está. Fora da igreja há de tudo: gente vendendo vela, churrasquinho, pipoca, quentão, bolas de hidrogênio, cataventos, pastéis — menos a festa. Voltam às casas cabisbaixos. Não desconfiam por que. E todos estarão firmes na próxima festa que houver.

O que preside a vida do povo durante a semana é a televisão. Calendas pega apenas uma estação. Da capital. Mas, não é da sua capital, não. É a de um estado vizinho. Isto, porém, não impede em nada a supremacia da tevê sobre tudo. Visitinhas, festinhas, conversas. Mata qualquer assunto com psius! e caras feias. As fofoqueiras incorrigíveis têm que se esforçar para impressionar os ouvintes com escândalos de proporções convincentes. Senão, a televisão não deixa. Televisão, não: as novelas. Todos engolem novelas. Mas, se lhes perguntarem o que aconteceu no capítulo anterior, ninguém se lembra mais.

Outra campeã da preferência popular é a loteria esportiva. Todos sonham com os milhões e bilhões sem fazer força. Ninguém vê a cor de um tostão. E não é que continuam jogando?
Futebol também é alvo de ávida aceitação. Ninguém conseguiu ganhar nem ao menos experiência com o tal de futebol do interior. Mas, o João Santos, dono da Papelaria Zulu faz as malas para se mudar da cidade todas as vezes que o time perde. Um dia, ele vai de vez e abandona Cristóvam, o jornaleiro, amigo inseparável, caluniador inveterado, tarado por um pretexto para soltar foguetes pró ou contra, não interessa.
Há um cirurgião apaixonado pela profissão, que sempre que extrai alguma coisa importante das entranhas do operado, enfia o troço num vidro e sai entusiasmado, mostrando para todo mundo, de porta em porta, nos bares, nos escritórios, sei lá.

As casas de prostituição andam às moscas. As prostitutas — tal é a obsessão pelo dinheiro — não conseguem mais esconder as intenções segundas que sempre foram as primeiras. Não enganam mais ninguém.

Como é a vida de um calendense pobre? Semelhante à de qualquer outro em igual situação nas cidades vizinhas e nas vizinhas das vizinhas, ou seja: em todo o país. Nasce. Quando cresce um pouquinho, aprende a apanhar de chinelo, correia, vara e é contemplado com a chamada educação, que consiste em transformá-lo em bode expiatório dos traumas e recalques do pai e da mãe, que, por sua vez, adquiriram traumas e recalques da mãe e do pai. Durante o dia, o menino calendense é solto na rua em companhia de meninos e meninas de idade e condições idênticas às suas. E, quando volta para casa, apanha porque brigou; porque não brigou, apanha. Apanha porque quem bate descobriu que é gostoso bater.

Um dia inventam um castigo maior: grupo escolar. As professoras, semi-analfabetas (dado o fracasso das escolas normais), ganham uma miséria, e em sua maioria consideram suplício lecionar diariamente. Somemos o ordenado ridículo da professora à sua incompetência profissional, à calamidade pública que são os livros didáticos, à tortura que é aturar crianças endiabradas e famintas. Somaram? Somemos isto ao ambiente que os meninos encontram em casa: pai, casos há, bêbado, dinheiro sempre curto, alimentação indigna, lamentações, pancadarias, berros.

Não nos aprofundemos muito. É melhor assim. Meu ônibus parte daqui a cinco minutos. É o tempo suficiente para eu ir ao sanitário vomitar o almoço e curar de uma vez por todas este enjôo de estômago.
 

Varginha, 1971

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Karisme, Nome de Mulher

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Karisme. Nome de mulher.

Assim a conheci. Mulher. E me apaixonei. Maravilha. Filha da Chuva e do Sol e da Naoite e da Estrela Perdida. Karisme Madrugada. Amada. Amiga. Ambígua. Karisme, só. E nada. Dezessete anos. Provavelmente, dezesseis. Dificilmente, quinze. Dezoito, nunca.

Me lembro que eu estava comprando jornal e era de tarde. Não havia troco. O jornaleiro saiu para trocar o dinheiro na charutaria e me deixou tomando conta da agência. Karisme entrou comendo pipoca.

― Boa tarde, moço. Já chegou o almanaque novo do Tio Patinhas?
― Não sei.
― Como, não sabe?
― Eu não trabalho aqui.
― Eu sei que você não trabalha aqui. Mas, devia saber. Uma coisa tão fácil... Saiu.

A beleza é um atrito brusco, sai fogo, assusta. A beleza paraliza, subverte, subjuga. Andei pensando muito sobre desespero e alegria. Constatei que já ia bem longe o dia em que descobri minha falta de afeto e iniciei a procura. A beleza é um jato macio de ousadia, é toda feita de mosaicos, momentos, minutos, e toma posse de tudo. Meu coração é como se fosse dois pulmões gigantescos e vazios. O ar que falta neles entraria de repente, de surpresa, e ― com ele, tudo o que me falta na vida. Fiz um diagrama de minha disponibilidade e ecnontrei um persistente branco, sem reta ou curv. A beleza é a mania de que não se abre mão, é um assovio rápido que não se ouve, mas silva, mexe, incute, repercute e fica. A beleza entra, escorrega e sai ― pronto: fugiu! Dá volta ao mundo e volta violenta como um bumerangue ou uma tempestade. Meu coração é como se fosse uma fibra filivibrante, um teatro abandonado, uma planície muito verde-escura, onde tudo ― das raízes às flores, cheirassem a desamparo, mofo, desuso.

Saí do jornaleiro com um princípio de interrogação. Mas, como saber? Atravessei a rua.   ― Quer engraxar, moço?
― Quero.
A beleza é um atrito brusco, sai fogo, assusta.
― Vou guardar o carro, porque está com defeito e pouca gasolina. Volto a pé. Me espere.
A menina do jornaleiro tinha cabelos louros e pele completamente morena e usava minissaia e era mais alta do que eu? Ou mais baixa?
― Com tinta ou sem tinta? ― pergunta o engraxate.
― Sem.

Era domingo. Ou bem parecia domingo. Ou sábado. Os bares vendiam bebidas a pessoas que, usualmete, não bebem de segunda a sexta. Gente caseira na semana inteira perambulava, fazendo avenida, procurando.
― Agora o outro ― pede o engraxate.
Fazia calor. Dezembro. Quase Natal, falta uma semana. Os bancos de jardim são daqueles que sentam primeiro. Por cansaço, vício ou preguiça.
A menina do Tio Patinhas tinha olhos verdes?
― O outro ― pede o engraxate.

O pipoqueiro, em frente ao cinema, vende pipoca mais caro do qwue os outros. Karisme comia pipoca.
― O dinheiro, moço ― o engraxate pede. E some.
O que fazer? Continuar sentado? Beber? Cinema? Há quanto tempo não vou ao cinema? Um bêbado passa no passeio, me provoca e imediatamente esquece. O ir-e-vir faz-se ver na avenida. Montão de cabeças, pernas e braços subindo. Ou descendo. Ali, um casal boda-de-prata. Aqui, a menina de sandálias (por causa do calor) buscando o que ainda não perdeu e nem sequer conhece, e nem sequer sabendo que busca. Solitários mil. Solteironas maquiadas com toda a esperança e vestidas com mais esperança ainda, aos pares, de braços dados, se oferecem, no fútingue fútil, como gado em leilão. Tudo pode acontecer aos que passam. E tudo pode se passar aos que acontecem. Melhor ficar esperando, resolvi. Ou esperando. A menina de cabelos loiros achou um absurdo eu não saber se a revista veio. A noite veio. Tem lua, gramado e estrela. Um fiado de folha me falou: Karisme. A noite caiu como se fosse uma coleção de água que pula fora da bacia inclinada e se esparrama no chão igual lençol. Menina morena, loura no cabelo, lua nos olhos, inferno na pele.

A avenida, agora, recebeu reforços. É o pesoal que estava assistindo ao futebol. Subindo ou descendo, chegando ou saindo, poluindo ou pulando, a população circula. Quilômetros. Em torno de um mesmo eixo: a praça. o povo gosta muito de andar. Vai precisar de gostar mesmo. Muito. Começou a ventar suave. A menina da revista estaria por ali? O vento venta. Inventa. Vai. Mas, volta. Não seria desagradável rever seus cabelos loiros e tirar a dúvida a respeito de seus olhos. Está. Não. Não vi. Não está. Cai uma folha da árvore. É o vento. Meu coração é como se fosse uma bola de fogo.

Gente demais, muita gente, sai do cnema através de um portão estreito. Terminou a sessão das seis. A massa humana comprime-se, empurra-se, ajeita-se e deságua na rua. Vai dordar. É o fútingue. Não, ela não poderia estar saindo do cinema. Não dava tempo. O vento é tão fraco que os penteados prevalecem. Quando chegará a revista do Tio Patinhas? Há filas para comprar entradas e Oreste Maurizio não voltou. Mas, que besteira eu ficar pensando nessa menina. O povo passa. Convictamente passeia. A fome. O vento. O vento. Eu, esperadamente só. Às vezes, uma vontade inconsciente que vem do outro lado de mim. E o vento... Que pergunta um segredo, que balança uma rosa, que procura uma fresta.

Meu coração é um jarro de barro e uma semente ausente. Meu coração é como se coabitassem, numa chaminé, um morcego de muletas e um pince-nez capenga. Se, vez por outra, um reflorescimento amarelado de palpites ameaça brotar em meu ouvido esquerdo, não desabrocha. Vadia

O povo passa e deixa o vento e deixa o medo e o coração não é de ferro. Sofre. Sofre, coração. Ontem não foi o teu dia. Mas, amanhã não será também, não. Sofre, sofre, bomba boa, palhaço de palha, omelete de vidro. Sofre, pedaço de pau, espinho capado, cometa esfiapado, cadarço destecido.
 

 Varginha, 1971

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